Acórdão nº 719/16.4TXPRT-F.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 07 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelLU
Data da Resolução07 de Outubro de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I 1.

Nos autos de processo supra identificados, por despacho judicial de 30 de Abril de 2020, foi declarada perdoada a pena aplicada ao arguido LC no âmbito do processo nº ..., perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infração, acrescerá à agora perdoada.

  1. Não se conformando com a decisão, dela recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões: 1ª - O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional; 2ª - O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, de 6 de Abril, suspendeu todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19; 3ª - Pelo que, enquanto durar a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado; 4ª - Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão; 5ª - Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa; 6ª – Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido LC no âmbito do Processo nº ..., não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n. º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, n.º, desse mesmo diploma legal.

    Nestes termos, e pelos mais que V. Ex.as, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, far-se-á JUSTIÇA.

    (…) 5. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência. II O despacho recorrido tem o seguinte teor: “LC foi condenado, por decisão proferida em 06/03/2018, no âmbito do processo nº ..., já transitada em julgado, na pena 12 meses de prisão, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal.

    Por decisão proferida em 08/10/2019, transitada em julgado em 14/11/2019, foi a dita pena de substituição revogada e determinado o cumprimento de 9 meses e 29 dias de prisão efectiva.

    O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena na medida em que se encontra em execução a pena de 14 meses de prisão, em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, aplicada no âmbito do processo nº (...), pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, cujo termo ocorrerá em 14/07/2020.

    Em 11 de Abril de 2020, entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de Abril, que no art. 2º estatui que “1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos./ 2 – São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena./3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única./4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos./5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão./6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos nºs 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal. /7 – O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. /8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. /9 - O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.” Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.

    Com efeito, o crime por que o arguido foi condenado no processo nº... não é um daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.

    No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra recluído em estabelecimento prisional, dado que cumpre pena em regime de permanência na habitação; ora, há quem entenda que a mencionada Lei 9/2020 apenas abrange pessoas efectivamente confinadas em estabelecimento prisional à data da sua entrada em vigor face à redacção conferida aos números 1, 2 e 4, do mencionado artigo 2º, que refere sempre “reclusos” – daí se retirando, por isso, que a lei só se aplica a quem esteja na aludida situação de reclusão em estabelecimento prisional.

    Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma – em artigo publicado em e-book do CEJ, em edição actualizada em 22 de Abril de 2020, disponível na página do CEJ – tal orientação não é constitucionalmente aceitável.

    Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

    De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena susceptível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objecto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.

    Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efectivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão...

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