Acórdão nº 424/20 de Tribunal Constitucional (Port, 31 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução31 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 424/2020

Processo n.º 403/2020

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A. (o ora Recorrido, sendo aqui Recorrente o Ministério Público) apresentou, junto do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, um pedido de habeas corpus, nos termos do artigo 220.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal (CPP), tendo em vista a sua restituição à liberdade, resultando a privação desta da imposição de uma situação de confinamento pelas autoridades de saúde da Região Autónoma dos Açores (RAA).

Alegou, em síntese: (a) tendo regressado a S. Miguel, onde tem a sua residência habitual, no dia 10/05/2020, vindo de Lisboa, foi encaminhado, conjuntamente com todos os demais passageiros do voo, para o hotel …, sito em Ponta Delgada, pelas forças de segurança que se encontravam no local para tal efeito; (b) nessa ocasião, não lhe foi permitido contactar com qualquer pessoa, designadamente familiares, situação que perdurava até ao momento da apresentação do pedido de habeas corpus; (c) de acordo com a informação que lhe foi prestada teria de ali permanecer (nessa situação) 14 dias, para proteção da saúde de todos, em virtude da pandemia por Covid-19; (d) não lhe foi permitido sair do quarto onde se encontra nem contactar com a mulher ou terceiros, estando o local sujeito a vigilância policial permanentemente; (e) a sua condução ao hotel mereceu a sua oposição, pois não apresenta qualquer sintoma da doença nem foi sujeito a qualquer rastreio para determinação de contágio pela Covid-19; (f) pediu para ir para casa, invocando a ilegalidade e arbitrariedade dessa situação, o que lhe foi negado por, está em crer, representantes da Direcção Regional de Saúde; (g) considera a restrição dos direitos fundamentais, nos quais se inclui a liberdade, subtraída à competência da Região Autónoma dos Açores e violadora do princípio da proporcionalidade, entre outros vícios apontados à medida aplicada.

1.1. Admitido liminarmente o requerimento, foi proferido despacho nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 221.º do CPP. A Autoridade de Saúde Regional prestou informações escritas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 221.º, n.º 2, do CPP. Alegou, em síntese, que: (a) o requerente veio voluntariamente para S. Miguel sabendo da necessidade de confinamento obrigatório, pelo que não se pode concluir que foi detido, tanto mais que podia ter pedido para regressar ao local de origem, o que não lhe seria negado; (b) o requerente não está privado da liberdade, apenas está limitado no seu direito de circulação o que é permitido no Estado de Calamidade, não havendo fundamento para habeas corpus, pois não há qualquer detenção do mesmo; (c) a detenção pressupõe uma medida coativa contra a vontade e que resulta de um ato involuntário, ora dirigir-se voluntariamente para um local, cuja autorização para entrada depende de sujeição a medida confinamento profilático, não é subsumível à privação involuntária da liberdade, tanto mais que o requerente pode, a qualquer momento, desistir de entrar na RAA para findar o seu confinamento profilático; (d) a medida de confinamento obrigatório profilático foi decretada pela Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, de 04/05/2020, cujo artigo 11.º mantém em vigor a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, de 27/03/2020, a qual, por seu turno, tem como normas habilitantes as alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e os artigos 9.º, 10.º, 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, de 22 de novembro, do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, que por sua vez se funda no artigo 60.º da Lei de Bases da Proteção Civil; aqueles artigos 9.º, 10.º e 11.º são as normas habilitantes da Resolução do Conselho de Governo n.º 123/2020, de 04/05/2020, atribuindo ao Governo Regional dos Açores a competência para declarar os estados de contingência e de calamidade pública regional respetivamente, tendo sido ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 10.º que foi determinado o confinamento profilático; (e) dentro da normalidade constitucional estão previstos condicionamentos ao direito de circulação previstos no artigo 27.º da CRP, que são igualmente os que constam das normas habilitantes da resolução n.º 132/2020; a medida de confinamento imposta é proporcional pois as medidas anteriores menos restritivas, de quarentena profilática na ilha de residência junto das suas famílias, revelaram-se ineficazes, sendo eficaz do ponto de vista sanitário é proporcional, respeitando o principio da proporcionalidade; (f) não há qualquer sacrifício absoluto do direito à circulação previsto no artigo 27.º, da CRP, mas apenas dos seus condicionamentos, limitado no tempo (14 dias) e no espaço (apenas para quem viaja do exterior), em homenagem a dois bens e direitos fundamentais: à vida e à saúde, previstos nos artigos 24.º e 64.º da CRP.

1.1.1. Procedeu-se à audição da autoridade de saúde regional nos termos do n.º 2 do artigo 221.º do CPP, que se fez representar na diligência pelo Delegado de Saúde que coordena o acolhimento no aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, tendo-se procedido, igualmente, ao interrogatório do requerente.

1.1.2. No Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada foi proferida decisão, datada de 16/05/2020, no sentido de recusar a aplicação, por inconstitucionalidade (mais concretamente, por violação do disposto nos artigos 1.º, 13.º, 18.º, 20.º, 27.º, 165.º, n.º 1, alínea b), 225.º, n.º 3, 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º da Constituição), das normas contidas nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, também na parte em que remete para a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores e, em consequência, de conceder a providência requerida, ordenando-se a restituição do requerente à liberdade.

Tal decisão considerou verificados os seguintes factos:

“[…]

1 – A. é piloto aviador prestando serviço em companhia aérea situada no estrangeiro, tendo a sua casa de morada de família em S. Miguel, onde reside a sua mulher.

2 – Regressou a Portugal no dia 08/05/2020, desembarcando no Aeroporto de Lisboa, permanecendo em Lisboa até ao dia 10/05/2020, por só nessa data haver voo para S. Miguel.

3 – No dia 10/05/2020, embarcou no voo TAP, n.º …, com destino a S. Miguel, tendo aterrado no aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, pelas 09h55m.

4 – Ainda durante o voo foi-lhe entregue pelo pessoal de cabine um questionário, que presume fosse emitido pela autoridade de saúde regional, contendo questões sobre o local de onde provinha, se tinha determinados sintomas, quais os seus contactos, questionário esse que preencheu.

5 – Na mesma ocasião foi-lhe entregue uma declaração parcialmente preenchida, que devia completar com a sua identificação e assinatura, declarando que o incumprimento de quarentena o fazia incorrer em crime de desobediência, declaração que não subscreveu por não concordar com a mesma.

6 – Após o desembarque foi conduzido com os demais passageiros, cerca de 50, para a área de recolha da bagagem, onde aguardaram em fila, a vez de serem atendidos por duas senhoras que se encontravam no local.

7 – Quando chegou à sua vez, entregou os papéis que havia preenchido no avião à mesma, tendo esta colocado questões idênticas às que já constavam do questionário, tendo efetuado uma qualquer anotação relativamente ao facto da declaração referida em 5), não estar preenchida e assinada.

8 – Após responder às perguntas colocadas pela senhora que o atendeu, que presumiu ser enfermeira, reafirmando que não tinha qualquer um dos sintomas de COVID, foi-lhe entregue o desdobrável cuja cópia consta de fls. 11v.º-12, com informações sobre o novo coronavírus/COVID 19, e informado que no folheto tinha a indicação de um número de telefone para questões médicas e outro para questões não médica.

9 – Em seguida foi encaminhado para outra zona do aeroporto, onde permaneceu conjuntamente com os demais passageiros e respetivas bagagens, até ser transportado num autocarro, escoltado por um carro policial com os rotativos ligados, para o Hotel …, sito à Avenida …., em Ponta Delgada.

10 – Uma vez ali chegado foi encaminhado para a zona do check-in, tendo-lhe sido atribuído o quarto …, altura em que foi informado que não podia sair do quarto, onde teria de permanecer durante os próximos 14 dias.

11 – Mais foi informado que as refeições seriam fornecidas pelo hotel em três momentos definidos do dia, havendo duas alturas em que podia solicitar refeições/snacks adicionais.

12 – Acatou o que lhe foi indicado, verificando que havia um agente da PSP à porta de entrada do hotel.

13 – Efetuado o check-in foi para o seu quarto onde tem permanecido ininterruptamente.

14 – A limpeza e manutenção do quarto é feita por si, fornecendo o hotel toalhas e lençóis para mudar a cama, se solicitados.

15 – A lavagem e tratamento da sua roupa pessoal tem de ser efetuada por si, tendo sido informado que não havia serviço de lavandaria, mas ser-lhe-ia fornecido detergente, se solicitado.

16 – Foi informado que apenas seria possível aos familiares e amigos deixarem bens de 1.ª necessidade na receção para lhe serem entregues, como produtos de higiene, não tendo sido permitido que a esposa lhe trouxesse roupa para seu uso pessoal.

17 – Desde o dia 10/05/2020, apesar de falar telefonicamente com a...

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