Acórdão nº 397/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 397/2020

Processo n.º 964/18

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto (TRP), em que é recorrente A. e recorrida B., Lda., a primeira vem interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada «LTC»), dos acórdãos proferidos por aquele Tribunal em 11 de abril e 27 de junho de 2018.

A recorrida propôs uma ação executiva contra a recorrente, tendo apresentado à execução um cheque e uma letra de câmbio. A recorrente opôs-se à execução, invocando a exceção de inexistência de relação subjacente e abuso de preenchimento do cheque e da letra de câmbio dadas à execução. Na referida ação, ficou provado que, à data de preenchimento dos títulos de crédito dados à execução cujo valor somado era de 7.696,37€, a ora recorrente devia à recorrida quantia não inferior a 10.876,07€ (cf. fls. 166 e 167).

Perante as instâncias, a recorrente arguiu ainda a inconstitucionalidade dos artigos 703.º, n.º 1, alínea c), e 724.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho e adiante designado «CPC»).

O tribunal recorrido, no acórdão proferido em 11 de abril de 2018, deu por demonstrado «que tanto o cheque como a letra de câmbio foram apresentados à execução não como títulos de crédito mas sim como quirógrafos (…), sendo certo que no articulado executivo inicial a exequente invocou de modo suficiente a relação subjacente» (cf. fl. 177) e julgou improcedente a oposição à execução. Quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas, afirmou o tribunal «não vislumbra[r] qualquer violação dos princípios constitucionais invocados neste recurso, a saber e recorde-se os consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 8.º, n.os 2 e 3 e 13º da CRP.» (cf. fl. 177). A recorrente requereu enfim a reforma desta decisão, pretensão que foi indeferida pelo acórdão de 27 de junho de 2018 (cf. fls. 199-204).

2. Foi então interposto o recurso de constitucionalidade destas decisões, ao abrigo das «alíneas b) e c) do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15.11». Admitido o recurso, a recorrente foi notificada para explicitar a norma ou interpretação normativa, extraída dos artigos 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, do CPC, que constituiria o objeto material do recurso de constitucionalidade (cf. fls. 227). Em resposta, aduziu o seguinte (cf. fls. 230-231):

«(…)

2

O artigo 703.º, n.º 1, alínea c) diz que:

“À execução apenas podem servir de base (…) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio ou sejam alegados no requerimento executivo”.

E o artigo 724.º, n.º 1, alínea e) diz que:

“No requerimento executivo, dirigido ao Tribunal de execução, o exequente (…) Expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (...)”.

3

Por força do que foi alegado, mormente no requerimento por que foi interposto o presente recurso, é inconstitucional a parte da al. c), do n.º 1 do art.º 703.º do C.P.C que diz que podem servir de base à execução, valendo assim como título executivo, “Os títulos de crédito (quando estes são uma letra de câmbio ou livrança ou cheque), ainda que meros quirógrafos”, quando “os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio (documento) ou sejam alegados no requerimento executivo”.

4

Com tal proposição, pela via da lei ordinária, o Estado Português renega o que se comprometera respeitar, quando subscreveu, sem quaisquer reservas, as Convenções que aprovaram as leis uniformes sobre letras e livranças e sobre cheques, acabando, assim, até por dar mais força – e por muito mais tempo – a um documento que, segundo a lei pertinente, perdeu o direito (poder ou faculdade) de ação ou, até, que nunca chegou a ter esse direito de ação por não cumprir os requisitos legais da sua formação (sendo, apenas, cheques, letra ou livrança aparente), ou porque não foi exercido no modo e tempo legais.

5

De tal consequência (do “quirógrafo”, a quem o legislador quer dar a natureza perdida ou que até nunca a teve, não poder valer como título executivo), resulta também a inconstitucionalidade da parte da alínea e), do n.º 1 do art.º 724.º referido, na parte que diz “Expõe sucintamente os factos que fundamento o pedido, quando não constem do título executivo, e quando esse título é quirógrafo de cheque, letra ou livrança.

6

Ao agir assim o legislador “esqueceu-se” que “PACTA SUNT SERVANDA”...»

3. Notificadas as partes para apresentar alegações, a recorrente apresentou as seguintes conclusões (cf. fls. 257-259):

«CONCLUSÕES:

I

1.ª

Neste recurso invoca-se a inconstitucionalidade das proposições (ou parte de proposições) da al. c) do n.º 1 do art.º 703.º e al. c), do n.º 1 do art.º 724.º do C.P.C que atribuem a natureza e força de título executivo a escritos que aparentam ser letra, livrança ou cheque, nomeadamente porque ostentam uma dessas palavras, sem a qual a letra não é letra, a livrança não é livrança e o cheque não é cheque, mas que não chegaram a adquirir a natureza de letra, livrança ou cheque, ou que, por outras razões previstas na lei, perderam essas virtualidades ou força legal.

2.ª

O art.º 703.º do C.P.C diz, na alínea c) do seu n.º 1, que à execução pode servir de base “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.

Aqui invoca-se a inconstitucionalidade total da parte que diz “ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”, e a inconstitucionalidade da vontade legislativa que atribui a tais escritos, que já não são títulos de crédito, qual “repr[i]stinação”, a natureza de títulos de crédito.

3.ª

O art.º 724.º do C.P.C, na alínea e) do seu n.º 1, como que confirmando e completando a norma referida na conclusão anterior, diz que, no requerimento executivo, o possuidor de um qualquer dos ajuizados quirógrafos “Expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo”, ou seja, permitem ao possuidor desse escrito criar unilateralmente um título executivo.

4.ª

Nestas conclusões introdutórias importa considerar – e depois reter - que a permissividade das normas em causa ainda permite que as coisas vão bem mais longe que aquilo que comporta a letra da lei.

Para o efeito basta cotejar o que o Exequente alegou no requerimento inicial (mais aí não fez que alusões) e o que as instâncias julgaram provado (Parte A, parágrafos 3 e 4), salvando o que não fora cumprido (cf., parte final da al. c) do n.º 1 dos art.ºs 703.º e a 1.ª parte da al. e), do n.º 1 do art.º 724.º).

5.ª

Os presentes embargos respeitam a uma execução fundada num CHEQUE prescrito, não preenchido pela Embte. e sem ter sido alegado e provado, pelo Exequente, qualquer pacto de preenchimento, e sem ter sido apresentado a pagamento, nem dentro da data prevista na LU nem em qualquer outra, e numa letra de câmbio, cujos manuscritos não foram escritos por si (salvo a assinatura do aceite), sem ter sido alegado nem provado pela Exequente qualquer pacto de preenchimento, sem que tal letra tenha sido apresentada a pagamento, e que também estava prescrita.

6.ª

E, assim, mais uma vez se demonstra o que pode acontecer quando um sistema viola (ou não os tem) os princípios que lhe asseguram consistência e sentido. (É como com as pessoas: quem não tem princípios, todo o mundo é seu.)

7.ª

Estas experiências concretas evidenciam o valor metódico do princípio normativo na aferição da constitucionalidade das normas legais – ou mesmo da conformidade “versus” desconformidade da interpretação das normas legais com a Constituição -. Enquanto princípio fundante de uma qualquer decisão jurídica, que ancora e concretiza o princípio de justiça, é assim guia inestimável para evidenciar se a norma em apreço e uma norma injusta (a chamada lei injusta), que a Constituição não pode validar.

8.ª

Por este prisma, de tudo o que foi alegado ao longo da fundamentação destas alegacões, procurou-se evidenciar que o disposto nos artigos 703.º, 1, c) e 724.º, 1, e) do C.P.C, ao permitir a formação unilateral de um título a que é dada à força de título executivo, que assim permite que sejam praticados os atos violentos da ação executiva contra uma pessoa indefesa numa primeira fase, e sempre com defesa enfraquecida, por causa das regras do ónus da prova, na fase da defesa por embargos, sem que haja outra justificação que não seja tornar as coisas mais fáceis para aqueles que tem poderes sócio-económicos dominantes, atenta contra os princípios, direitos, princípios e disposições da Constituição seguintes:

a) os princípios da dignidade da pessoa humana, ao permitirem a objetivação do executado, e o princípio de justiça, que impede injustos favorecimentos, consagrados no art.º 1.º.

b) Os princípios de direito, do Estado de direito, da segurança jurídica, da unidade do sistema jurídico e da confiança jurídica, consagrados no art.º 2.º.

c) O princípio da igualdade, ao tornar os portadores de quirógrafos judicialmente privilegiados, quer em relação a outros credores quer contra os alegados devedores. Este princípio está consagrado no art.º 13.º.

d) Os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, pois nada justifica que se faça do que nunca foi ou que deixou de ser, aquilo que se...

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