Acórdão nº 394/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 394/2020

Processo n.º 1112/2019

3.ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorridas A. e B, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), do despacho proferido pelo Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3, em 30 de setembro de 2019, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica e material, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, 112.º, n.ºs 1, 2 e 5 da Constituição, das normas constantes do artigo 26.º-I, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, tendo, nessa sequência, remetido para ação própria, a intentar pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, nos termos previstos no artigo 13.º da Lei do Apoio Judiciário, a decisão da questão suscitada pela Notária aquando da remessa do processo de inventário tramitado no Cartório Notarial.

2. O Instituto de Segurança Social, através das decisões proferidas em 24 de junho de 2016 e 25 de agosto de 2016, atribuiu às recorridas o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o presente processo.

Ao proceder à remessa do processo para efeitos da homologação da partilha, abrigo do preceituado no artigo 26.º-I, da Portaria 278/2013, de 26 de agosto, a Notária requereu ao Tribunal que verificasse se as referidas interessadas no âmbito do presente processo de inventário, em função da decisão homologatória de partilha, haviam adquirido meios económicos suficientes para proceder ao pagamento dos montantes de cuja liquidação tinham sido dispensadas em virtude da concessão de apoio judiciário e, na afirmativa, a respetiva condenação no ressarcimento dos montantes despendidos pelo fundo previsto no artigo 26.º-A e pelo IGFEJ.

Sobre tal requerimento recaiu o despacho de 30 de setembro de 2019, que recusou a aplicação do artigo 26.º-I, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, remetendo a decisão da questão suscitada pela Notária para ação própria, a intentar pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, nos termos previstos no artigo 13.º da Lei do Apoio Judiciário.

3. No segmento que aqui releva, consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:

«[…]

Por decisões do ISS proferidas em 24.06.2016 e 25.08.2016 foi atribuído a A. e a B. o beneficio de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Veio a Exmo. Sr. Notária, ao abrigo do preceituado no art. 26.º-I P 278/2013, de 26.08, requerer seja aferido se as referidas interessadas, em função da decisão homologatória de partilha, adquirem meios económicos suficientes para proceder ao pagamento dos montantes de cuja liquidação foram dispensadas em virtude da concessão de apoio judiciário, e, na afirmativa, a respetiva condenação no ressarcimento dos montantes despendidos pelo fundo previsto no artigo 26.º-A e pelo IGFEJ ao abrigo da mencionada portaria e da LAJ.

Cumpre aferir, a título prévio, se é ao juiz que incumbe fazer essa apreciação.

O apoio judiciário é uma das modalidades de proteção jurídica e encontra-se regulada pela Lei n.º 34/2004 (LAJ — cfr., designadamente, o seu art. 6.º/1).

A decisão sobre a concessão de proteção jurídica compete não aos tribunais como aconteceu até à entrada em vigor da LAJ, mas sim ao dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência ou sede do requerente, conforme resulta do preceituado no art. 20.º do mencionado diploma legal.

A este nível, a intervenção judicial apenas ocorre se for interposto recurso da decisão que o referido dirigente máximo proferir sobre um pedido de concessão de proteção jurídica que lhe seja formulado (cfr. art. 27º LAJ).

O art. 10.º LAJ prevê expressamente a possibilidade de, em determinadas circunstâncias (nomeadamente se o requerente ou o respetivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la -- cfr. n.º 1 al. a)), a proteção jurídica ser retirada, sendo que essa retirada tanto pode ser efetuada oficiosamente, como a requerimento do MP, da parte contrária, do patrono nomeado ou do solicitador de execução designado (cfr. art. 10.º/3 LAJ); contudo, nada neste normativo (nem nos seguintes) esclarece quem tem competência para tomar a decisão de revogação da proteção jurídica concedida.

Salvador da Costa, em anotação ao art. 10.º LAJ, considera que a lei atribui competência para a decisão do incidente de retirada de proteção jurídica aos serviços de segurança social — Apoio Judiciário, 6ª Ed., Almedina, 2007, pág. 68,

Tal parece ser, efetivamente, a intenção legal: no art. 10.º/5 prevê-se que ''Sendo retirada a proteção jurídica concedida, a decisão é comunicada ao tribunal competente e à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores, conforme os casos.". Ora, se a decisão para a retirada da proteção jurídica fosse incumbência do tribunal onde a causa estivesse pendente, desnecessária seria a previsão expressa da comunicação dessa decisão ao referido tribunal — pois que teria sido o próprio destinatário da comunicação a tomar a decisão comunicanda.

Por outro lado, sob a epígrafe "Aquisição de meios económicos suficientes", o art. 13º LAJ prevê que:

"1- Caso se verifique que o requerente de proteção jurídica possuía, à data do pedido, ou adquiriu no decurso da causa ou no prazo de quatro anos após o seu termo, meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento, é instaurada ação para cobrança das respetivas importâncias pelo Ministério Público ou por qualquer outro interessado.

2- Para os efeitos do número anterior, presume-se aquisição de meios económicos suficientes a obtenção de vencimento na ação, ainda que meramente parcial, salvo se, pela sua natureza ou valor, o que se obtenha não possa ser tido em conta na apreciação da insuficiência económica nos termos do artigo 8.º.

3- A ação a que se refere o n.º 1 segue a forma sumaríssima, podendo o juiz condenar no próprio processo, no caso previsto no número anterior.

4- Para fundamentar a decisão, na ação a que se refere o n.º 1, o tribunal deve pedir parecer à segurança social.

5- As importâncias cobradas revertem para o Instituto de Gestão Financeira e de Infraestruturas de Justiça, I. P.

6- O disposto nos números anteriores não prejudica a instauração de procedimento criminal se, para beneficiar da proteção jurídica, o requerente cometer crime."

Ou seja:

Quando no decurso de uma ação judicial o beneficiário de apoio judiciário adquire meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento nos termos da LAJ não é na própria ação que tal questão é decidida, a título incidental, mas sim em ação autónoma, a instaurar pelo MP ou por qualquer outro interessado, para a qual o beneficiário de apoio judiciário é citado, na qualidade de Réu, podendo, como tal, arrolar testemunhas, e sendo obrigatoriamente solicitada a emissão de parecer ao ISS para efeitos de prolação da decisão.

Ora, o art. 26.º-I da Portaria n.º 278/2013, de 26.08, parece instituir regime distinto daqueles supra descritos.

Lê-se neste artigo, para o que aqui releva, que:

"1- Nos processos de inventário em que algum interessado beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o notário, quando procede à remessa do processo para o tribunal para efeitos da homologação da partilha prevista no n.º 1 do artigo 66º do regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março, deve requerer ao juiz que, nos termos do artigo 13.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, avalie se o interessado adquire, em função da decisão homologatória de partilha, meios económicos suficientes para pagar os montantes de cujo pagamento foi dispensado em virtude da concessão de apoio judiciário, e, se for o caso, o condene no ressarcimento dos montantes despendidos pelo fundo previsto no artigo 26.º-A e pelo IGFEJ ao abrigo da presente portaria e da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho.

2- Nos casos em que o juiz possa proferir decisão relativa ao pedido de homologação da partilha, mas não disponha ainda de elementos suficientes para apreciar a questão referida no número anterior, aquela é logo proferida, sendo a questão referida no número anterior decidida em apenso próprio."

Da concatenação destes dois normativos resulta que no âmbito de um processo de inventário (que atualmente não tem cariz judicial), incumbirá ao juiz proferir decisão sobre a responsabilização do beneficiário de apoio judiciário pelo pagamento das custas do processo não no âmbito de uma ação intentada especificamente para o efeito mas sim a título incidental e sem obrigatoriedade quer da audição do visado, quer da solicitação de parecer ao ISS, quer da inquirição de testemunhas.

Tal corresponde a uma diminuição clara das garantias de defesa estabelecidas no art. 13º LAJ, o que viola o disposto no art. 20.º/1 CRP (onde se preceitua que "A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)".

Mas para além de violador do disposto no art. 20.º/1 CRP), o art. 26º-1/1 e 2 da Portaria n.º 278/2013, de 26.08, é ainda inconstitucional por violação quer do disposto no art. 112.º/1, 2 e 5 CRP, quer do disposto no art. 165º/1/al. b) CRP).

Vejamos.

A CRP define quais são os atos legislativos...

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