Acórdão nº 9/20.8BCLSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 18 de Junho de 2020

Magistrado ResponsávelLINA COSTA
Data da Resolução18 de Junho de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: F….., Sociedade Anónima Desportiva (F….. SAD ou Recorrente), devidamente identificada na acção arbitral nº 47/2019, veio interpor recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em 7.1.2020, que julgou improcedente o recurso que interpôs contra a Federação Portuguesa de Futebol (FPF ou Recorrida) e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), na qualidade de contra-interessada, no processo disciplinar nº ….., mantendo a deliberação do Pleno do Conselho de Disciplina, Secção Profissional, da FPF, de 23.7.2019, que, por sua vez, manteve a decisão da Secção Profissional do mesmo Conselho de Disciplina, de 18.6.2019, que a condenou em quatro sanções disciplinares p. e. p. pelos artigos 186º, nº 2 (arremesso de objectos perigosos), 187º, nº 1, alíneas a) e b) (comportamentos incorrectos do público por entoação de expressões grosseiras e ofensivas, e rebentamento de engenhos pirotécnicos) e 127º, nº 1 (inobservância de outros deveres), todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RD), e a puniu com diversas multas, no valor total de €12 184,00 e mais decidiu fixar as custas em €4 890,00 a cargo da demandante.

Nas respectivas alegações, a Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:“- I - A. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 07/01/2020 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática de quatro infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 186.°-2, 127 °- 1 e 187.°-1 a) e b) do RD, punindo-a em multa no valor total de € 12.184,00.

B. Acontece que, o acto punitivo proferido em 18/06/2019, e mantido pela Deliberação emitida em 23/07/2019 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol é, desde logo, nulo por violação do direito de defesa da Recorrente, e bem assim por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência.

C. Com efeito, a norma plasmada no art. 13.°, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no arts. 32.°, n.° 10 e 2 da CRP, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art. 20.°, n.° 4 da mesma Lei Fundamental - o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.

- II - D. Não se conforma a Recorrente com a decisão condenatória, porquanto desprovidos que são os autos de provas que deponham em favor da sua responsabilização, ou seja, que o clube teve uma actuação culposa na verificação dos factos, mostrava-se necessariamente prejudicada a sua condenação pelas infracções disciplinares imputadas.

E. Em primeiro lugar, a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração de engenhos pirotécnicos estar - por princípio - afecta a adeptos da Recorrente, sem sequer haver prova da exclusividade dessa afectação, não permite concluir - com toda a probabilidade próxima da certeza ou, pelo menos, para além de toda a dúvida razoável - que os autores das deflagrações tenham efectivamente sido sócios ou simpatizantes da recorrente.

F. Assim, não se tendo apurado qual a concreta identificação dos adeptos infractores, não bastava à Recorrida, e agora ao Tribunal a quo, invocar que os factos ocorreram em bancada afecta a adeptos desta para que se pudesse concluir (e levar à matéria assente) que os autores das condutas sub judice eram sócios ou simpatizantes da F…...

G. Autoria essa que deve ser dada como não provada, o que desde já se requer.

H. Considerando as infracções em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que não só os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da –F….. SAD, mas ainda que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da –F….. SAD.

I. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem o arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.

J. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.

K. É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.

L. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar este quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.

M. A míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a Recorrente falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à Recorrente ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue.

N. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da Recorrente somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.

O. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a Recorrente é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.

P. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).

Q. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, R. e que não se imponha à Recorrente (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante, S. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 186 °-2, 127.º-1, 187.º-1, al. a) e b), e 258 °, n.° 1, do RDLPFP, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.

T. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a actuação culposa da recorrente.

U. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado.

V. Sendo a actuação culposa um dos “demais elementos das infracções” que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186.°-2, 127 °- 1 e 187.º-1, a) e b) do RD.

W. Como tal, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2º da CRP), a interpretação dos artigos 186.°-2, 187.°, n.° 1, alíneas a) e b), 127.°- 1 e 258.°, n.° 1, do RDLPFP, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social...

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