Acórdão nº 261/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Maio de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução13 de Maio de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 261/2020

Processo n.º 445/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. Correu termos no Juízo Central Criminal de Leiria, com o número 4/03.1IDACB um processo comum para julgamento por tribunal coletivo, em que é arguido (entre outros) A. (o ora Recorrente). O tribunal de primeira instância condenou-o, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alíneas a) e c), e 104.º, n.os 1, alíneas d), e ), e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e pelos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º do Código Penal na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob a condição resolutiva do pagamento de €153.962,23 à Fazenda Nacional no decurso do período da suspensão.

1.1. Desta decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando, designadamente, o seguinte:

“[…]

m) o procedimento criminal deve sempre ser declarado prescrito, em virtude de o crime continuado ser sancionado pela lei vigente à data da conduta mais grave que integra a continuação, sem prejuízo da aplicação de lei mais favorável posterior – vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.01.2011, prolatado no processo n.º 2335/06.4TAGMR.G1;

n) a conduta mais grave dada como provada é a respeitante ao IRC de 1999, vigorando nessa data o RJIFNA, sendo o prazo de prescrição de 5 anos;

o) assim, tendo-se consumado o crime continuado em 28.11.2003, data da última fatura, incluída em declarações fiscais pela B., Lda., o procedimento criminal extinguiu-se por efeito da prescrição em 29 de maio de 2014, porquanto nesse dia se mostravam decorridos 10 anos e seis meses;

p) é que, deve-se distinguir, entre tempus delicti e o momento da consumação;

q) o Acórdão recorrido fez interpretação inconstitucional da norma do artigo 79.º, n.º 1, do Código Penal, ao considerar que é o RGIT a lei aplicável, por o último ato criminoso ter sido praticado depois da sua entrada em vigor, por violação dos artigos 29.º, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

[…]” (sublinhado acrescentado).

1.1.1. Pelo Tribunal da Relação de Coimbra foi proferido acórdão, datado de 20/06/2018, concedendo parcial provimento ao recurso do arguido A., unicamente quanto ao período de suspensão da execução da pena de prisão, que alargou para três anos. Da fundamentação deste aresto consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

A argumentação do recorrente assenta desde logo num pressuposto que não se acolheu, qual seja o da alteração à matéria de facto, isto mormente no sentido que começa por alegar de que expurgada da mesma a factualidade de 2003, a última fatura, incluída em declarações fiscais, foi emitida em 26.03.2001, data em que começou a correr o prazo prescricional, mostrando-se vigente o RJIFNA, que não o RGIT; ora, […] o acervo fáctico deve manter-se intacto e daí que por tal fundamento não colha esta sua pretensão.

Por outro lado, mostra-se inequívoco o entendimento sufragado no acórdão recorrido (citando o aresto prolatada pelo TRG no processo 20/20.0IDBRG-X.G1 […]) e em cujos termos o crime de fraude fiscal praticado através da emissão de fatura falsa, após acordo prévio dos vários arguidos, consuma-se com a emissão da fatura, senda essa a data relevante para o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, acrescendo que sendo o crime cometido através da emissão de várias faturas, a contagem do prazo prescricional inicia-se com a emissão da última fatura.

Fixado o início de vigência do RGIT em 5 de julho de 2001, e sendo a emissão de algumas das faturas posterior a esta data é então este o regime aplicável, isto sem que daí decorra qualquer preterição aos mandamentos constitucionais do coligido artigo 29.º, n.os 1 e 4.

[…]” (sublinhados acrescentados).

1.2. O arguido interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), do Tribunal Constitucional, tendo em vista a apreciação da inconstitucionalidade da norma “[…] contida no artigo 79.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretada [no sentido em] que é aplicável o regime à data do último crime cometido (no caso dos autos o RGIT), apesar de a conduta mais grave cometida integrante do crime continuado ter sido cometida quando estava em vigor lei anterior (no caso dos autos o RJIFNA)”, invocando que suscitou a questão nas alegações de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação de Coimbra.

1.2.1. Tal requerimento foi objeto de um despacho de não admissão, por não ter sido observado o ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade, previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC (para além de, no entender do senhor desembargador relator, não ter sido indicada no requerimento de interposição do recurso, com suficiente clareza, uma questão de inconstitucionalidade com adequada dimensão normativa).

1.2.2. O Recorrente reclamou, então, para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, reclamação que deu origem ao processo n.º 1163/2018, desta 1.ª secção, e que culminou na prolação do Acórdão n.º 150/2019, pelo qual se decidiu deferir a reclamação apresentada, determinando-se o recebimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, tendo por objeto a norma contida no artigo 79.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de, perante continuação criminosa, a determinação do regime jurídico-penal aplicável operar por referência à data do último facto integrante da continuação, independentemente de esta integrar factos anteriores de maior gravidade.

1.2.3. Regressados os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, foi o recurso admitido e novamente remetido ao Tribunal Constitucional, sendo aqui determinado, por despacho do relator, a notificação das partes para alegarem.

1.2.4. Nesta sequência apresentou o Recorrente a motivação seguinte:

“[…]

O recorrente foi condenado pela prática de um crime de fraude fiscal qualificado, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alíneas a) e c), 104.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2, do RGIT e pelos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º do Código Penal na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob a condição resolutiva do pagamento de € 153.962,23 à Fazenda Nacional no prazo de 3 anos.

O crime de fraude fiscal qualificado, segundo o Acórdão condenatório ocorreu através da aquisição de ‘faturas/recibos sem correspondência com efetivos serviços’ datadas entre 31.01.1999 e 30.01.2004 (vd. n.ºs 152 e 215 dos factos provados).

Assim, no decurso da prática do crime de fraude fiscal qualificado, na forma continuada existiram dois regimes: o RJIFNA e o RGIT.

O Acórdão de 1.ª instância sufragou o entendimento de que o regime aplicável é o constante do último ato criminoso praticado da conduta continuada.

Discordando desse entendimento recorreu o ora alegante para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando:

[…]

O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, nos seguintes termos:

‘... o crime de fraude fiscal praticado através da emissão da fatura falsa, após acordo prévio dos vários arguidos, consuma-se com a emissão da fatura, sendo essa a data relevante para o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, acrescendo que sendo o crime cometido através da emissão de várias faturas, a contagem do prazo prescricional inicia-se com a emissão da última fatura’.

Concordando o ora alegante na íntegra com o expendido.

Mas já não concordando com o exarado a seguir:

‘Fixando o início da vigência do RGIT em 5 de julho de 2001, e sendo a emissão de algumas das faturas posterior a esta data é então esse o regime aplicável, isto sem que daí decorra qualquer preterição aos mandamentos constitucionais do coligido artigo 29.º, n.ºs 1 e 4.’

No entender do ora alegante foi interpretado o artigo 79.º, n.º 1, do Código Penal de forma inconstitucional, ao considerar aplicável o regime vigente à data do último ato integrante do crime continuado.

[…]

Da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 79.º, n.º 1, do Código Penal, interpretada no sentido de, perante continuação criminosa, a determinação do regime jurídico-penal aplicável operar por referência à data do último facto integrante da continuação

Preceitua o artigo 79.º, n.º 1, do Código Penal:

‘O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação’.

Tendo a conduta mais grave sido cometida estando em vigor um regime jurídico mais favorável que o regime jurídico em vigor à data do último facto integrante da continuação, qual o aplicável?

[A i]nterpretação de ser o aplicável o regime vigente à data do último facto integrante da continuação afronta o artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

Dispõe este preceito constitucional:

‘1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

[…]

4.Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido’.

Neste sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 31.10.2012, no processo 224/06.7TACBC.G2-A.S1,[…] nos seguintes termos:

‘Ora, quanto aos pressupostos da punibilidade da conduta do agente deve aplicar-se a lei vigente na data em que cada uma das contribuições à segurança social retidas deveria ter sido entregue, salvo se lei posterior for mais favorável ao arguido.

Entender de outro modo, seria violar o...

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