Acórdão nº 00632/12.4BECBR de Tribunal Central Administrativo Norte, 20 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelRog
Data da Resolução20 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

EM NOME DO POVO Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: F. M. B. C.

veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 23.02.2018, pelo qual foram julgadas procedentes as invocadas excepção de ilegitimidade passiva da 3ª Ré, A. C. A. T., absolvendo-a da instância e excepção peremptória de prescrição do direito de indemnização, absolvendo os 1º e 2º Réus, respectivamente, Hospitais da Universidade de Coimbra e A. I. E., dos pedidos, na presente acção administrativa comum, sob a forma ordinária, que o Recorrente move contra Centro Hospitalar Universitário de C..., E.P.E. , A. I. E. e A. C. A. T.

, pedindo a condenação dos Réus a título de responsabilidade civil no pagamento solidário de um montante total de €1.095.700,00, correspondendo €26.000,00 a danos emergentes, €549.700,00 a lucros cessantes, €20.000,00 à imobilização do automóvel e despesas com transportes e €500.000,00 a danos não patrimoniais, bem como aos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Invocou para tanto, em síntese, que a 3ª Ré é parte legítima passiva e que o prazo de prescrição é de cinco anos e sofreu interrupção enquanto durou o processo criminal instaurado pelo Autor para investigação dos factos alegados na petição inicial, pelo que a acção não estava prescrita na data em que os Réus foram citados para ela na presente acção.

F. – C. S., S.A. contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido quanto à prescrição da acção.

*Cumpre decidir já que nada a tal obsta.

* I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional: 1. O Despacho Saneador (Sentença) concluiu pela ilegitimidade passiva da 3ª Ré, absolvendo-a da instância com fundamento em que, como se lê na página 7, nos termos do Decreto-Lei 48.051, de 21/11/67, “em caso de mera negligência do funcionário, apenas responderá civilmente a Administração”.

  1. Tal entendimento é fonte de controvérsia doutrinal e jurisprudencial.

  2. E a esse propósito, o ora recorrente invoca em seu favor a corrente jurisprudencial e doutrinal que sustenta que as normas dos arts. 2º e 3º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21/11/67, são incompatíveis com o estatuído nos artigos 22º e 271º, n.º 1 da CRP.

  3. Designadamente, o Acórdão do STJ, de 6/5/1986, Proc. nº 73710, o Acórdão do STA, de 3/5/2001, Rec. 47084 e a doutrina referida nas alegações do presente Recurso.

  4. Além de que, no âmbito médico – e é nesse domínio que se situa o caso sub judice -, em que está em causa a saúde e a vida das pessoas, perante atos e omissões por parte de funcionários especialmente qualificados e treinados e sujeitos quer a rigorosos protocolos, quer às leges artis, quer ainda a outros deveres de cuidado laterais e assessórios, bem como a deveres bioéticos e deontológicos, e para mais com acesso a seguros de responsabilidade civil profissional, faz todo o sentido a responsabilização pessoal por negligência.

  5. Acresce que, no contexto específico da responsabilidade médica, a jurisprudência e a doutrina que o ora recorrente invoca em seu arrimo traduz o entendimento mais favorável à proteção dos cidadãos em face de lesões provocadas pelos funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas.

  6. Assim num caso de responsabilidade médica em que o Réu é o mesmo que figura como 1º Réu no processo cuja sentença aqui se põe em crise, Maria Fernanda Palma observa que “um âmbito mais restrito dos títulos de responsabilidade para os funcionários ou agentes do Estado em atividades que pela sua natureza não têm de ser estritamente levadas a cabo por entidades públicas (neste caso, a atividade médica) ou não se referem ao próprio funcionamento da "máquina do Estado" e não interferem diretamente com o exercício de poder público não tem apoio em qualquer particularidade que justifique um regime especial de responsabilidade, que exclua, precisamente, a responsabilidade a título de mera culpa” (Voto de Vencida no Acórdão n.º 5/2005 do Tribunal Constitucional, Processo n.º 335/2002).

  7. De facto, à obrigação de indemnizar que o ora recorrente pretende fazer valer contra a 3ª Ré deverá ser irrelevante se os factos ocorreram num hospital público ou privado.

  8. A esse propósito, é de notar que a concreta causa de pedir em relação à 3ª Ré não está configurada como tendo origem numa relação jurídica enquadrada por poderes de autoridade, restrições de interesse público ou imposição de deveres públicos ao autor perante a Administração e o seu ius imperium.

  9. Por outro lado, as normas desrespeitadas pela 3ª Ré não têm fonte administrativa, pois o que produziu o dano foram atos e omissões censuráveis quer a médicos de hospitais públicos quer a médicos de hospitais privados.

  10. Ainda que assim não se entenda, a decisão de ilegitimidade passiva ora posta em causa funda-se igualmente, como se lê na página 9 da Sentença, no facto de que, o autor também “não identificou quais as funções cometidas a esta ré e que teriam sido exercidas com o zelo ou diligência manifestamente inferiores àquelas que se achava obrigada em função do cargo de direção que então exercia”, nem que tenha excedido os limites das suas funções.

  11. Salvo o devido respeito por opinião contrária, os factos alegados nos artigos 75º, 76º, 77º, alínea a) 80º, 81º e 82º, 83º, 87º, 89º, 102º e 109º da petição inicial, devidamente enquadrados no todo dessa peça processual e pelo modo como o recorrente os descreve, revestem-se das características de comportamentos com culpa grave e grosseira por parte da 3ª Ré ou excedendo os limites das suas funções, pois, 13. Sendo percetível a qualquer médico que algo grave ou manifestamente anormal tinha ocorrido na assistência médica prestada ao autor, perante as repetidas solicitações deste para ser examinado e tratado, mesmo assim, a 3ª Ré prosseguiu indiferente a tudo, ao contrário do que seria de prever da parte de um profissional da saúde dotado da ética inerente ao exercício da profissão.

  12. Isto sem esquecer que a 3ª Ré é médica especialista e Diretora do Serviço, sendo legítimo exigir-se-lhe especiais conhecimentos e habilidades em assuntos que respeitam à sua área de especialidade.

  13. Ademais, o próprio 1º Réu alega no art. 164º da sua contestação que: “se se provar que o agente que interveio nos atos que provocaram os danos peticionados agiu com culpa grave, isto é, com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se acha obrigado em razão do seu cargo, sempre exercerá o Hospital Réu o direito de regresso de que goza”.

  14. Ainda que assim não se entenda, também o facto de a 3ª Ré não ter contestado a ação não implica necessariamente a sua ilegitimidade passiva, pois perante a factualidade alegada na petição inicial é indubitável a sua legitimidade processual nos termos e para os efeitos do disposto art. 26º nºs 1, 2 e 3 do CPC.

  15. Ou, pelo menos, tal factualidade não se subsume a um caso de manifesta improcedência da ação, uma vez que não é evidente, face à causa de pedir, que a 3ª Ré não possa ser juridicamente responsável pelos danos invocados.

  16. Ainda que assim não se entenda, a decisão de ilegitimidade passiva ora posta em causa funda-se também, como se lê na página 9 da Sentença, no facto de que, “o autor nenhum ato médico ou outro realizado no exercício das funções a cargo da 3º Ré, lhe atribui uma conduta dolosa.” 19. Salvo o devido respeito por opinião contrária, tal entendimento não encontra suporte nos autos, atendendo-se ao alegado nos artigos 123º e 124º da petição inicial em que se imputa à 3ª Ré a consideração séria de risco de realização do resultado danoso (elemento intelectual) e a conduta (elemento volitivo) conformando-se com aquela realização, abandonando o curso das coisas (elemento emocional).

  17. Em suma, considerando os fundamentos expostos nos pontos anteriores e outros melhores de direito, deve ser revogada a decisão posta em crise no que respeita à julgada ilegitimidade passiva da 3ª Ré, proferindo-se outra que julgue improcedente a exceção da legitimidade passiva da 3ª Ré, com as legais consequências daí advindas.

  18. A Sentença conclui que, como se lê na página 13 “estamos perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual” e funda tal conclusão em que, conforme se lê na página 5, “perscrutando a petição inicial, verifica-se que o A. pretende fundar a sua pretensão indemnizatória no instituto da responsabilidade civil, não chegando a afirmar se, em concreto, considera estar perante uma situação de responsabilidade civil contratual ou extracontratual. Todavia, os tribunais superiores têm reiteradamente afirmado que quem recorre a um estabelecimento de saúde público o faz não ao abrigo de uma relação contratual”.

  19. Salvo o devido respeito, na dúvida sobre a estatuição que a lei impõe, deve optar-se pela solução que se mostre mais acertada e, por isso, mais justa, tendo em conta, além do mais, a unidade do sistema jurídico (artigos e do Código Civil).

  20. Pelo que, sem prejuízo de melhores razões de direito, no domínio da prestação dos serviços de saúde é mais adequado à realidade e conduz a soluções mais justas, aplicação do regime do concurso de responsabilidades ou, pelo menos, da responsabilidade contratual.

  21. Segundo o Acórdão do TCA-Norte, de 30-11-2012, Proc. nº 01425/04.8BEBRG, a aplicação do regime da responsabilidade civil contratual justifica-se porque: a) A situação de facto, de prestação de cuidados de saúde num estabelecimento integrado no SNS, é equivalente à de um contrato de prestação de serviços (artigo 1154.º do Código Civil) e, por isso, tem cabimento a mesma proteção legal, o mesmo é dizer, em caso de incumprimento, a aplicação do regime previsto nos artigos 798.º e ss. do Código Civil; b) O regime da responsabilidade civil contratual é mais favorável ao lesado; c) Justifica-se a inversão do ónus da prova porquanto o devedor tem mais meios, em...

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