Acórdão nº 757/19 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução11 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 757/2019

Processo n.º 578/19

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A., Lda., e recorrido B., a primeira interpôs recurso ao abrigo das alíneas a), b), e i), in fine, do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), dos acórdãos do STJ, de 13 de fevereiro de 2019 e de 10 de abril de 2019, proferidos no âmbito de uma ação declarativa de condenação, emergente de contrato de trabalho que visava o pagamento de créditos laborais e respetivos juros de mora.

No acórdão do STJ de 13 de fevereiro de 2019, concluiu o STJ que o Tribunal da Relação do Porto havia incorrido em erro, na medida em que tinha dado por comprovada a extinção da obrigação da ora recorrente por efeito de remissão abdicativa, revogando nesta parte a decisão recorrida. Inconformada, a ora recorrente requereu a reforma do Acórdão do STJ, pedido que foi indeferido pelo acórdão de 10 de abril de 2019.

2. Destas decisões veio então a recorrente agora interpor recurso para o Tribunal Constitucional através de requerimento com o seguinte teor (fls. 815-819):

«A., Lda., com os sinais dos autos em referência, tendo sido notificada do douto acórdão tirado em Conferência, vem agora interpor o presente recurso do mesmo e do anterior que este último complementa, para o Tribunal Constitucional,

O que faz, nos termos e com os seguintes fundamentos:

I - Das razões de facto e de jure que levam a impetrante a interpor o presente recurso:

1. A exacerbada defesa e proteção dos direitos do autor, tal como vem expendida no douto acórdão prolatado neste STJ - agora, complementado pelo que (não) conheceu do pedido de reforma, indeferindo-o - com a mesma argumentação aduzida no antecedente, ou seja, naquele que conheceu parcialmente da revista interposta pelo autor - mostra-se desfocada dos normativos de natureza substantiva e adjetiva que suportam a ratio legis do disposto no art. 863° do CC, dando razão ao trabalhador/revidente na parte em que pretendeu demonstrar que o documento em mérito, confessada e livremente subscrito por si, não englobava renúncia ao direito a exigir da ré/empregadora o pagamento doutros créditos que diz assistirem-lhe e não abrangidos naquela declaração, motivo porque não estaríamos perante uma verdadeira remissão abdicativa.

2. Tese esta perfeitamente estrambólica, diga-se, contrariada pela melhor e maioritária jurisprudência tirada nas nossas instâncias recursivas, incluindo aí, naturalmente, a deste Supremo Tribunal de Justiça e a do Tribunal Constitucional, que, consabidamente, não sendo uma instância de Amparo, é agora chamada a pronunciar-se - mais uma vez, porque são vários, neste domínio, os arestos ali prolatados, cremos que sine voce discrepante, porque não conhecemos nenhum que se conforte com a interpretação tirada nesta suprema instância - sobre se a norma que este Tribunal recorrido entendeu não aplicar é ou não constitucional, posto que tanto ocorre inconstitucionalidade das normas substantivas ou adjetivas no ato da sua aplicação como no da sua não aplicação, melhor dito, ao aplicá-las ou a recusar-se a fazê-lo quando daí advenha violação de direitos e princípios que a nossa Lei Fundamental prescreve como inarredáveis.

3. A verdade é que na douta decisão em mérito, de que ora se recorre para o Tribunal Constitucional, resulta premiada a reprovável atitude e posição assumida nestes autos pelo autor/empregado, como violados os direitos do empregador, tratando o igual por desigual, exigindo deste aquilo que não exigiu daquele, favorecendo-o, notoriamente, com uma interpretação mais benévola, do ponto de vista das ali assacadas a um e a outro, no subjetivo domínio das intenções que poderiam ter estado por trás da atitude daquele, como declarante, e da deste, na posição de um declaratário normal.

4. Efetivamente, enquanto declaratária normal acerca do significado e alcance da referida declaração subscrita peio trabalhador, viu-se a suplicante arredada do direito que lhe assistia a tomar o documento em causa como uma verdadeira remissão abdicativa, tal como o legislador a define no art. 863° do CC, e cujo sentido não pode ser outro senão aquele que uma pessoa de cultura mediana e moralmente bem formada, lhe inculcaria. Para além de que uma decisão destas só poderá contribuir para a insegurança a incerteza e a desconfiança de quem se vê na necessidade de trabalhar, no fundo, do cidadão comum, porque há muitos que sem o fazerem, vivem à tripa-forra da manigância aproveitando-se da credulidade das pessoas normais e de expedientes deste jaez, e que, ainda por cima, como cereja fresca em cima de bolo podre, são bafejados por decisões que podem ser muito perfeitas e convincentes do ponto de vista técnico e jurídico, não pomos isso em dúvida no caso dos autos, mas não são, seguramente, justas, nem para a suplicante nem para a generalidade do cidadão comum, porque apenas beneficia o infrator, sendo essa, de resto, e ao que cremos, a razão que explica o entendimento jurisprudencial maioritário adverso àquele que no douto acórdão se proclama.

5. Na verdade, o subscritor de uma declaração desta natureza, ele sim, mostrou conhecer muito bem son avis, é claro), os direitos que lhe assistiam, melhor dito, que julgava assistirem-lhe, e que dispunha sempre de um prazo bastante para corrigir a mão, ludibriando e frustrando, assim, as legítimas expectativas de quem confiara tanto nele como na força probatória daquele documento, como sucederia, aliás, com qualquer pessoa de bem, no sentido de que, a partir desse momento, nada mais lhe era devido, sendo esse, que não outro, o seu único sentido e alcance normal, sendo, pois, minimamente compreensível e legítimo que quem contrata tenha o direito de pautar a sua vida por um padrão médio, e de confiar que aqueles com quem se envolve procedam com ele da mesma forma, radicando nessa confiança, nesse caldo de cultura, toda a motivação que leva as pessoas de bem a confiarem umas nas outras.

6. Pela negativa, é dizer, pela sua não aplicação aos autos, resta, pois, inconstitucional, o art.863° do CC, porque a atinente factualidade - mostrando-se fixada em definitivo na Relação do Porto, aliás, nos seus precisos termos, e uma vez que esta nossa última suposta instância de Amparo, podendo tê- la alterado nessa vertente decisória, não o fez, deixando-a incólume, antolhando-se-nos, pois, de todo contra legem, na estrita ótica de direito, a fundamentação/surpresa ali aduzida na parte em que revogou o douto acórdão prolatado no Tribunal da Relação do Porto, aí se incluindo a subsequente argumentação complementar em sede do pedido de reforma e no tocante à arguida inconstitucionalidade daquele normativo, que, salvo o devido respeito pelo seu Excelso Relator, não se coaduna de modo algum, com os princípios da lógica, da segurança e confiança nas decisões judiciais, e. sobretudo, no da identidade, porque, em direito - e, neste domínio, to be or not to be - o elemento a definir ou é branco ou é preto, estando vedado ao intérprete extrair do texto em análise conclusões muito mais extensas do que a exiguidade das premissas que as suportam, sob pena de violarmos a lei mais importante do silogismo lógico, de resvalarmos, sobretudo, para a especulação inerente ao modus vivendi e à cultura de cada um, e, pior ainda, de subvertermos a letra e o texto sub specie, traindo as intenções de quem o redigiu e subscreveu.

7. Essa, parte da motivação que decidiu o impetrante a levar tal questão ao Tribunal Constitucional, com vista - e é apenas isso o que dele se espera - a verificar se a norma em causa, na interpretação que do mesmo fez o Tribunal da Relação do Porto, é ou não inconstitucional, versus se a motivação de facto e de jure que suporta o douto acórdão que antecede e que veio depois complementá-lo, se compagina ou não, esse sim, com os princípios mais sagrados da nossa Constituição, ou se, à outrance, dito por outras palavras, as razões que levaram o Supremo Tribunal de Justiça a revogar a decisão revidenda colidem ou não com os princípios que regem o nosso direito constitucional, designadamente se o art. 863° do Código Civil pode ou não ser objeto de fiscalização concreta no Tribunal Constitucional para onde se recorre.(Vide, a esse propósito o TC 600/04, in Proc. 797/03, 2''Sec. de que foi relator o Exmo Cons. Paulo Mota Pinto)

8. De resto, além de a declaração em causa não se mostrar contrariada pelo disposto nos arts 17° e 59°-1.a) da CRP, interpretar e subsumir o documento em causa ao vulgar conceito de título de quitação total e não como válida remissão abdicativa é que deverá ter-se por inconstitucional, na medida em que tal entendimento só colheria se o autor tivesse mesmo direito a importâncias que, eventualmente, excedessem as que a ré lhe devesse e o obrigasse a assinar-lha. como conditio sine qua non daquele pagamento.

Dito por outras palavras, seria imprescindível que o autor tivesse alegado e provado que esse pagamento fora feito sob coação física ou moral ou que a sua declaração de vontade plasmada naquele documento não se mostrava plenamente esclarecida quanto aos direitos que lhe assistiam, ou, ainda, na afirmativa, que não fora emitida livremente, v.g., por estar então condicionado por necessidade ou interesse premente em receber, quanto mais não fosse, parte da dívida que a recorrente se dispunha a pagar-lhe.

9. O que, a ter sido esse o caso, e não foi como (não) comprovado nos autos, acarretaria a anulabilidade, por erro ou coação, do referido texto - se verificados, bem entendido, os demais requisitos prescritos na lei civil - tal valendo por dizer...

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