Acórdão nº 774/19 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução17 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 774/2019

Processo n.º 276/2019

Plenário

Relator: Conselheira Maria José Rangel Mesquita

Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional

1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, doravante LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora ou de outra com que esta esteja em relação de domínio ou de grupo.

De forma a legitimar o seu pedido, alega o requerente que tal norma já foi julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional, respetivamente nos Acórdãos n.ºs 1018/1996, da 2.ª Secção, 626/2011, da 2.ª Secção, e 53/2019, da 3.ª Secção (por mero lapso de escrita referenciado no requerimento como 53/2018), que confirmou a Decisão Sumária n.º 778/2018. De acordo com o requerimento do Ministério Público, as decisões referidas transitaram em julgado.

2. Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos conjugados dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.

3. Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II – Fundamentação

4. De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da LTC, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, previsto nesta mesma Lei.

Importa determinar, em primeiro lugar, se estão preenchidos os pressupostos para que o Tribunal possa tomar conhecimento do objeto do pedido.

5. Não havendo dúvidas quanto à legitimidade ativa do representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional para formular o pedido sob apreciação, verifica-se também que a norma contestada foi efetivamente julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, em três casos, sobre que incidiram os Acórdãos n.ºs 1018/1996, 626/2011 e 53/2019 (que confirmou a Decisão Sumária n.º 778/2018). Acresce não existir divergência quanto aos fundamentos de inconstitucionalidade, assentando os três juízos na violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente à data em que a norma foi editada (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro), a que correspondem as atuais alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º.

Deve sublinhar-se que a formulação normativa julgada inconstitucional nos três arestos acima referidos conheceu diferentes expressões linguísticas: no Acórdão n.º 1018/1996 o juízo incidiu sobre a “a norma constante do n.º 2 do art.º 398.º do Código das Sociedades Comerciais aprovado pelo Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de Setembro, na parte em que considera extintos os contratos de trabalho, subordinado ou autónomo, celebrados há menos de um ano contado desde a data da designação de uma pessoa como administrador e a sociedade que, com aquela, estejam em relação de domínio ou de grupo”; no Acórdão n.º 626/2011, sobre “o artigo 398.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, enquanto estabelece a extinção dos contratos de trabalho – celebrados há menos de um ano – de que seja titular o trabalhador de uma sociedade, que venha a ser designado como administrador dessa sociedade”; e no Acórdão n.º 53/2019, confirmando a Decisão Sumária n.º 778/2018, apreciou-se “a norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte que determina a extinção do contrato de trabalho de que seja titular o trabalhador de uma sociedade, que venha a ser designado administrador dessa sociedade antes de decorrido um ano desde a celebração do contrato”.

Ora, ainda que através de diferentes enunciações, é inequívoca a identidade do segmento normativo em causa: nos três arestos foi julgada inconstitucional a norma que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora – apenas o Acórdão n.º 1018/1996 se referindo a sociedade que com aquela esteja em relação de domínio ou de grupo. Tal norma decorre, de forma muito clara, do teor literal do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

Nestes termos, há que concluir que nada obsta ao conhecimento do pedido, circunscrito à norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora.

6. O n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais disciplina as consequências da designação como administrador de uma pessoa que exerça, até esse momento, funções laborais na mesma sociedade anónima ou em outra que com ela esteja em relação de domínio ou de grupo. Tal preceito estabelece a suspensão ou extinção do contrato de trabalho (subordinado ou autónomo, nos termos do n.º 1), consoante este haja sido celebrado há mais ou menos de um ano:

«Artigo 398.º

Exercício de outras atividades

(…)

2 – Quando for designada administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.

(...)»

O teor do preceito em causa, constante da versão originária do CSC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, não foi objeto de alteração pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, que apenas aditou à versão originária do artigo 398.º do CSC, que integrava os números 1 e 2 (ora sindicado), os novos números 3 a 5 do preceito, nos termos seguintes (cf. artigo 2.º Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março):

«Artigo 398.º

[...]

1 - ...

2 - ...

3 - Na falta de autorização da assembleia geral, os administradores não podem exercer por conta própria ou alheia actividade concorrente da sociedade nem exercer funções em sociedade concorrente ou ser designados por conta ou em representação desta.

4 - A autorização a que se refere o número anterior deve definir o regime de acesso a informação sensível por parte do administrador.

5 - Aplica-se o disposto nos n.os 2, 5 e 6 do artigo 254.º»

Nos presentes autos, está somente em causa o segmento normativo, constante da versão originária do n.º 2 do artigo 398.º do CSC, a qual se manteve até hoje inalterada, que estabelece a extinção dos contratos de trabalho celebrados há menos de um ano, por ter sido esse o critério normativo que foi objeto dos três julgamentos de inconstitucionalidade.

6.1. A regra fiscalizada associa-se à opção legislativa, consagrada no n.º 1 do artigo 398.º do CSC, de previsão de um princípio de incompatibilidade entre as funções de administrador e de trabalhador. Esta proibição de cúmulo foi positivada pela primeira vez no Código das Sociedades Comerciais, ainda que a jurisprudência anterior já concluísse maioritariamente por tal solução — v. g., entre muitos, os Acórdãos do STA de 10.03.1953 (Coleccção de Acórdãos do STA n.º XII), de 18.10.1960 (Coleccção de Acórdãos do STA n.º XV) e de 18.01.1972 (Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 124, p. 535) e do STJ de 15.10.1980 (BMJ, n.º 300, p. 227) e de 16.12.1983 (BMJ, n.º 332, p. 418).

A incompatibilidade entre o exercício de funções laborais e o exercício do cargo de administrador é usualmente justificada com base em três razões.

Em primeiro lugar, certa doutrina sustenta existir uma impossibilidade estrutural de acumulação das funções: serão inconciliáveis o estatuto de subordinação inerente à condição de trabalhador e o cargo de administrador, que se identifica com a posição de empregador (Paulo de Tarso Domingues, “Administradores trabalhadores – breves notas”, Católica Law Review, vol. II, n.º 2, 2019; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II — Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, 2016, p. 72; José Engrácia Antunes, A proibição de cúmulo administrador / trabalhador — da sua constitucionalidade, Almedina, Coimbra, 2018, p. 19; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 17.11.2016, proc. 394/10.0TTTVD.L1.S1).

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