Acórdão nº 23/16.8T9ENT-C.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 08 de Outubro de 2019

Magistrado ResponsávelJO
Data da Resolução08 de Outubro de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO Recorre MF do despacho proferido, em 14 de janeiro de 2019, pela Exmª Juíza do Juízo de Instrução Criminal de Santarém (Juiz 2), nos autos de “Embargos de Terceiro” registados sob o nº 23/16.8T9ENT-C, autos esses processados por apenso ao processo-crime nº 23/16.8T9ENT, despacho que julgou verificada a exceção de litispendência, indeferindo, assim, a apreciação do mérito dos referidos embargos de terceiro.

Da respetiva motivação retira as seguintes (transcritas) conclusões: “A. Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou totalmente procedente a exceção dilatória de litispendência, e consequentemente do conhecimento do mérito da causa dos Embargos de Terceiro, do qual a ora Recorrente não se conforma com a decisão recorrida, uma vez que a mesmo é inadequada, pois atendendo à prova produzida e à propriedade e posse do bem, a Meritíssima Juiz deveria de ter proferido decisão diferente.

  1. A Embargante intentou a presente ação após o arresto da sua viatura automóvel com a matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, com o fundamento de que a mesma tinha sido adquirida com dinheiro proveniente da Casa do Povo ----, que tinha sido entregue pela mãe da Embargante, ML.

  2. O veículo automóvel de matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, foi adquirido pela Embargante em 23 de Março de 2011, e arrestado no dia 16 de Julho de 2018.

  3. O veículo foi adquirido pela Recorrente, com ajuda financeira de familiares, e contribuiu para a aquisição do mesmo com a entrega do veículo automóvel, com a matrícula --EI, marca Citroen, modelo Xantia, através da Lei de incentivo ao abate (Decreto-Lei n.º 292-A/2000, de 15 de Novembro), donde recebeu o valor de 4.352,79 € (quatro mil e trezentos e cinquenta e dois Euros e setenta e nove cêntimos), conforme Documento n.º 4 da P.I.

  4. O Código Civil não nos dá uma definição expressa do direito de propriedade, no entanto o artigo 1305º caracteriza-o: “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

  5. Se interpretássemos a propriedade como se tratasse de um domínio, de maneira geral, estaríamos a ignorar o direito de propriedade constitucionalmente consagrado (artigo 62º da Constituição da República Portuguesa), na qual a propriedade, é muito mais que um direito exclusivo e ilimitado, e que deve atender às suas funções sociais, sob pena de perda da mesma.

  6. O artigo 62.º CRP tutela quanto ao conteúdo básico da garantia constitucional: o direito de aceder à propriedade (de adquirir bens); o direito de não ser dela arbitrariamente privado; e o direito de a transmitir inter vivos ou mortis causa; e, reconduz ainda ao direito de usar e fruir a propriedade, por ser ele indissociável do direito fundamental em causa enquanto direito (também) de liberdade.

  7. E a propriedade já foi entendida pura e simplesmente como um direito subjetivo do proprietário de usar, gozar, dispor e reaver a coisa, como melhor lhe aprouvesse.

    I. Quanto às faculdades de usar e fruir, não obstante inexistir uma referência expressa no preceito que as abranja, não se pode deixar de considerar a respetiva inclusão no conteúdo essencial do direito fundamental em apreço, com efeito, dá a possibilidade ao proprietário de aproveitar o seu bem. Para tal terá de existir um consentimento da parte do proprietário, para que a proteção constitucional da propriedade compreenda o direito ao aproveitamento dos bens.

  8. O artigo 62.º da CRP institui por conseguinte uma garantia de existência de propriedade, através da tutela dos direitos já adquiridos, bem como de um direito de aquisição de propriedade, onde ainda não há um valor patrimonial, mas sim um direito em abstrato, à aquisição de valores patrimoniais, surgindo ainda a confusão entre o domínio e propriedade, uma vez que esta era vista apenas como um direito real, sem estar ligada ao campo obrigacional.

  9. O domínio é o alicerce dos direitos reais. As faculdades de gozar, usar, dispor e reaver a coisa, são inerentes ao domínio. Sendo afinal estas as faculdades do proprietário, como estabelece o artigo 1305º do Código Civil, e assim, ao proprietário resta apenas a titularidade do bem, faltando-lhe o domínio, ou seja, o gozar, dispor, usar e reaver o bem, já que não mantém mais a relação com a coisa, por não exercer mais o poder que lhe é inerente. O domínio é a ingerência direta sobre a coisa, a relação do indivíduo com ela.

    L. Posto isto, com os fundamentos constitucionais que adquiriram os direitos reais, é difícil entender a propriedade apenas como uma relação do sujeito com a coisa, antes disso, a propriedade assume muito mais uma relação obrigacional. É patente que o proprietário tem as faculdades de usar, gozar, dispor e reaver o bem, desde que esteja consolidado seu domínio. Pelo que se entende que a propriedade tem dois conteúdos: um interno, que corresponde ao domínio, inserindo-o como direito real por excelência e um externo, que se relaciona com as obrigações, que não se desvincula do conceito de propriedade.

  10. E, assim, no caso em apreço verifica-se que o direito de propriedade do veículo automóvel de matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, pertence à Embargante. Encontrando-se registado em seu nome desde o momento da sua aquisição, apesar de tal registo não ter efeitos constitutivos.

  11. Ademais, foi a favor da Recorrente que ocorreu a traditio do bem, figurando esta como proprietária no âmbito do contrato de compra e venda celebrado com o vendedor da referida viatura.

  12. Escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-02-2014, consultável em www.dgsi.pt, o seguinte: “… A intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de atuação ou de utilização”.

  13. Pelo que, apesar da frequência com que a mãe da Embargante usa o veículo automóvel, tal só ocorre porque a Embargante o permite, no entanto, continua a ser a Embargante a pagar o IUC do respetivo veículo, bem como as demais despesas de manutenção do mesmo.

  14. E quando se coloca em causa a propriedade de um veículo automóvel, por a proprietária permitir que outra pessoa o possa utilizar, está a violar-se um direito de propriedade constitucionalmente consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

  15. Pelo que a Embargante é dona legítima e única proprietária do veículo automóvel de matrícula -LE-, marca Ford, modelo Fiesta, tendo assim toda a legitimidade em deduzir a presente ação de Embargos de Terceiro, e defender o contrário é colocar em crise a certeza e segurança que o legislador pretendeu acautelar com a forma contratual nominada - contrato de compra e venda.

  16. E, assim, ao decidir como decidiu, o tribunal violou os artigos 874º e 1305º do Código Civil, e o artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

  17. Ainda assim, por definição, o artigo 1251º do Código Civil diz que: “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”, e o artigo 1253º refere que: “são havidos como detentores ou possuidores precários: a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”.

  18. Ou seja, a posse encontra-se assente em dois elementos necessários: o corpus e o animus. Assim, se alguém tiver o mero exercício material sobre a coisa, sem a intenção de a ter para si, estaríamos perante um caso de detenção. Ele teria apenas o corpus, por ser um simples ato, um mero exercício, a posse natural. O animus, isolado, desprovido do corpus, torna-se inofensivo, pois apenas reside no campo intencional, subjetivo do indivíduo, sem qualquer possibilidade de reconhecimento legal.

    V. E, assim, a posse pode ser entendida como a...

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