Acórdão nº 3818/17.1T8VNG.G1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Julho de 2019

Magistrado ResponsávelTOMÉ GOMES
Data da Resolução11 de Julho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório 1. AA instaurou, em 05/06/2017, ação declarativa contra a Massa Insolvente da sociedade “BB, Construções, Lda” (1.ª R.), e CC e cônjuge DD (2.ºs R.R.), alegando, em síntese, o seguinte: .

A A. é arrendatária de parte de um prédio urbano composto de edifício de habitação e de parte de um prédio rústico composto por quintal, ambos descritos na Conservatória do Registo Predial de …; que eram propriedade da 1.ª R..

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Tal posição de arrendatária foi transmitida à A. por óbito do seu marido, EE, que celebrou o respetivo arrendamento mediante contrato escrito de 05/03/1975.

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Por escritura pública de 06/12/016, a 1.ª R. vendeu aos 2ºs R.R. a totalidade daqueles dois prédios, pelo preço global de € 40.000,00, sem ter facultado, previamente, à A. o exercício do seu direito de preferência. .

Só em 06/12/2016 é que a A. tomou conhecimento da celebração da referida venda.

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Assiste, por isso, à A. o direito de preferência na compra da totalidade dos referidos prédios, que formam uma unidade, sendo a parte urbana indivisível.

Concluiu a A. pedindo lhe fosse reconhecido o direito de haver para si os referidos prédios, livres de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de € 40.000,00 e ordenado o cancelamento dos registos prediais efetuados a favor dos 2.ºs R.R. adquirentes.

  1. Somente os 2.ºs R.R. contestaram a ação, deduzindo reconvenção e sustentando que: .

    Não existe o invocado contrato de arrendamento, tendo a A. sempre se apresentado perante o administrador da insolvência da 1.ª R. como residente no imóvel por ato de tolerância do respetivo proprietário, sem pagar as respetivas rendas.

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    Em face de tal posicionamento, a mesma incorre em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

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    Mesmo que assim não fosse, no caso de arrendamento sobre parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, como no caso sucede, desde a entrada em vigor do NRAU, não assiste ao arrendatário o direito de preferência.

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    Para além disso, o eventual direito de preferência teria caducado, porquanto a A. e o seu filho foram, desde 2013, sucessivamente informados pelo administrador da insolvência da 1.ª R. da proposta apresentada pelos 2ºs R.R. e da respetiva adjudicação, não tendo mostrado interesse na aquisição.

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    Os 2.ºs R.R. exigiram à A. a restituição dos prédios em causa por carta datada de 26/06/2017, o que esta não fez, incorrendo na obrigação de indemnizá-los pelo prejuízo inerente.

    Concluíram aqueles R.R. pela improcedência da ação e pediram, em via reconvencional, que fosse: a) – declarada a inexistência do alegado contrato de arrendamento; b) – ordenada a restituição dos prédios em referência aos R.R./Reconvintes como proprietários; c) – condenada a A. a indemnizar os mesmos R.R. na quantia mensal de € 100,00, contada desde 13/08/2017 até efetivo e integral pagamento.

  2. A A. deduziu réplica a impugnar a matéria de exceção invocada, mantendo que transmitira ao administrador da insolvência a sua intenção de preferir na compra pelo preço de € 40.000,00, o que por este não foi atendido, tendo posteriormente procedido à venda dos bens aos 2.ºs R.R., por tal valor, sem informar aquela da data da celebração do contrato de compra e venda.

  3. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 177-185/v.º, de 04/09/2018, a julgar improcedentes tanto a ação como as pretensões reconvencionais.

  4. Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, em sede de impugnação de facto e de direito, tendo a apelação sido julgada improcedente, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, conforme o acórdão de fls. 223-237, de 17/01/2019.

  5. De novo inconformada, vem agora a A. interpor revista excecional, sob a invocação do relevo jurídico e social da questão respeitante à existência ou não do direito de preferência do arrendatário habitacional sobre parte não autónoma de prédio arrendado, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC.

  6. A revista foi admitida pela formação dos três juízes deste Supremo Tribunal a que se refere o n.º 3 do citado artigo 672.º, conforme o acórdão de fls. 241-242, de 30/05/2019, com base nas seguintes considerações: «Trata-se de matéria com elevado relevo jurídico e social que, aliás, justificou uma recente alteração do disposto no art. 1091.º do CC, a qual foi introduzida pela Lei n.º 64/18, de 29-10.

    No domínio da anterior redação de tal disposição que foi aplicada no caso concreto, a sua interpretação pautou-se por uma acesa divergência jurisprudencial e doutrinal que se encontra assinalada designadamente nos recentes Acs. do STJ de 24-5-18 e de 18-10-18 (…).

    Trata-se, pois, de uma questão cuja resolução não é pacífica, justificando-se a intervenção clarificadora do Supremo Tribunal de Justiça que, ademais, agora será confrontado com argumentos que, num sentido ou noutro, podem ser extraídos da mais recente alteração legal e do processo legislativo que à mesma conduziu.

    Acresce ainda que nas alegações de recurso é suscitada a questão da aplicação imediata da lei nova, o que acrescenta relevo à matéria, acentuando a necessidade de uma intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça.» 8.

    A Recorrente estriba o recurso em extensas conclusões, muitas delas de cariz argumentativo, mas que, em termos de questões enunciadas, se resumem a saber se: 1.ª – O disposto no art.º 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, afasta a preferência do arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal na venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio; 2.ª – A interpretação daquele normativo no sentido de que o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência, em caso de venda ou de dação em cumprimento sobre a parte arrendada ou sobre a totalidade do prédio viola os princípios da confiança, da segurança jurídica e da primazia material postulados pelo princípio do Estado de direito democrático, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade e o conteúdo essencial dos direitos de propriedade privada e de acesso à habitação própria, todos eles consagrados nos artigos 2.º, 3.º, 13.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 62.º, n.º 1, e 65.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição; 3.ª – O disposto no art.º 1091º, do CC, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, tem aplicação ao caso presente, porquanto, apesar de a alteração legislativa ser inovadora e superveniente à data da instauração da ação, condiciona as disposições substantivas que regem o pleito, considerando que não existe decisão final com trânsito em julgado; 4.ª – Face ao disposto no art.º 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, quer na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, quer por aplicação imediata da redação introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, se impõe o reconhecimento do direito de preferência legal peticionado; 5.ª – Em suma, o acórdão recorrido viola os artigos 12.º, n.º 2, parte final, 416.º a 418.º, 1091.º e 1410.º do CC em conjugação com os artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC. Pede a Recorrente que seja revogado o acórdão recorrido, na parte impugnada, e substituído por decisão que julgue a ação procedente.

  7. Os Recorridos apresentaram contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado, mas, para a eventualidade de se concluir pela existência do direito de preferência peticionado, pedem a ampliação do objeto do recurso com vista a se conhecer da caducidade desse direito. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

    II - Delimitação do objeto do recurso Considerando o âmbito específico da presente revista excecional e atento o teor das conclusões da Recorrente, em função do qual se delimita o objeto do recurso, as questões a resolver são as seguintes: i) – Definir o alcance interpretativo a dar ao disposto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, em ordem a saber se este normativo atribui o direito de preferência legal ao arrendatário habitacional de parte específica de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, na venda da totalidade do mesmo; ii) – Apreciar se a interpretação desse normativo no sentido de afastar a atribuição do direito de preferência legal ao arrendatário habitacional, no caso e circunstâncias referidas, viola os princípios da confiança, da segurança jurídica e da primazia material postulados pelo princípio do Estado de direito democrático, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade e o conteúdo essencial dos direitos de propriedade privada e de acesso à habitação própria, consagrados nos artigos 2.º, 3.º, 13.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 62.º, n.º 1, e 65.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição; iii) – Em caso de improcedência das questões precedentes, saber se é aplicável ao caso presente o disposto no indicado artigo 1091.º do CC na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29/10; iv) – Por fim, ajuizar se da procedência, a favor da A./Recorrente, das questões enunciadas quer em i) e ii) quer em iii) resulta a existência do direito de preferência legal por ela peticionado.

    Para a hipótese de se concluir pela existência desse direito de preferência legal, na esteira da ampliação do objeto da revista deduzida pelos R.R./ Recorridos, importará então providenciar pela apreciação da exceção de caducidade daquele direito, por eles invocada, mas tida por prejudicada nas instâncias.

    III - Fundamentação 1. Factualidade dada como provada pelas instâncias Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade: 1.1.

    Por contrato reduzido a escrito, datado de 5 de março de 1975, FF deu de arrendamento a EE, para habitação do arrendatário e do seu agregado familiar, mediante o pagamento da renda mensal fixada à data em duzentos e cinquenta escudos, pelo prazo de um ano, com início no dia 1 de março de 1975 e termo no dia 28 de...

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