Acórdão nº 082/17.6BCLSB 0747/18 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 11 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelANA PAULA PORTELA
Data da Resolução11 de Setembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

I. Relatório 1.

O ESTADO PORTUGUÊS vem interpor recurso de revista do acórdão do TCAS de 15 de março de 2018 que julgou improcedente a ação administrativa de anulação do acórdão arbitral de 7/02/2017 (retificado por acórdão de 5/04/2017), por si movida contra a AEDL - AUTO-ESTRADAS DO DOURO LITORAL, S.A., com fundamento em violação do dever de fundamentação.

A AEDL havia apresentado no Centro de Arbitragem Comercial contra o aqui recorrente requerimento pedindo a condenação deste a repor o equilíbrio financeiro da concessão Douro Litoral, pedido que foi parcialmente procedente.

Subsidiariamente, e em caso de não admissão do recurso de revista, o Estado Português interpôs recurso de apelação, com efeito suspensivo (arts 140º, 142º, nº1, 143º, nº1, 144º e 148º CPTA).

  1. O recorrente conclui as suas alegações da seguinte forma: "A. O dever de fundamentação é uma característica essencial de todas as decisões dos tribunais e decorre da Constituição da República Portuguesa.

    1. Mesmo os autores que notam a tendência para maior “ligeireza” na fundamentação das decisões arbitrais relativamente às exigências aplicáveis nessa sede às sentenças dos tribunais do Estado não negam a sua necessidade, salvo nas exceções previstas na LAV/2011, que não têm aplicação no caso dos autos, e no caso das sentenças que se limitem a homologar acordos estabelecidos entre as partes, circunstância que não é igualmente a do caso vertente.

    2. A ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira gera nulidade da decisão arbitral, nos termos da LAV/2011.

    3. A ideia geral de “aligeiramento” do discurso fundamentador das sentenças arbitrais não pode merecer adesão à luz do sistema jurídico português.

    4. A função arbitral é, no Direito português, claramente assumida como jurisdictio (cf. o nº 2 do artigo 209º, da Constituição) e é essa recondução material que inapelavelmente conduz a que, no exercício da sua atividade, os árbitros fiquem sujeitos ao duty to give reasons que, em Estado de Direito democrático, marca a função jurisdicional e que a Constituição portuguesa estabelece no n.º 1 do artigo 205 º.

    5. O cerne do erro da decisão do TCA Sul reside em o Tribunal ter entendido que o padrão legalmente exigível de fundamentação das decisões arbitrais é o de uma “fundamentação meramente formal”, bastando, portanto, que qualquer coisa se diga no aresto arbitral para fundar a decisão, desde que isso que assim se diz seja inteligível.

    6. O TCA Sul não se deu conta de que lhe bastaria entender a lei no que respeita à fundamentação das decisões arbitrais, à luz do padrão aplicável às decisões judiciais para que a suficiência da “fundamentação meramente formal” desaparecesse, sendo certo que, na lei positiva, nada há que sustente a teoria da “fundamentação meramente formal”.

    7. Porque é sempre um método jurisdicional que está em causa, a prescrição da LAV/20114 de que “a sentença deve ser fundamentada” não pode senão ser tida em linha com as exigências que no sistema jurídico-constitucional português valem, em geral, para a motivação das sentenças da justiça estadual.

      I. Nesse contexto, não pode senão deixar de se considerar, pelo menos, o padrão mínimo que a esse respeito se extrai da nossa jurisprudência constitucional, isto é, que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se aos sujeitos processuais e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como obrigação de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.

    8. O cumprimento do dever de fundamentação das decisões só é alcançado quando os respetivos destinatários - e a comunidade globalmente considerada - conseguem conhecer cabalmente as verdadeiras razões que subjazem ao concreto juízo decisório, isto é, quando as decisões apresentam uma sustentada aptidão comunicativa dos critérios normativos e fácticos que foram determinantes da decisão.

    9. No caso da concretização do grau de suficiência da fundamentação das decisões arbitrais, esse recurso aos critérios da lei processual é mesmo o único caminho que, no Direito Português, resta ao intérprete.

      L. É que, lido sem qualquer complemento adicional, o comando da LAV segundo o qual “a sentença deve ser fundamentada” (nº 3 do artigo 42º) redundaria numa norma de controlo impossível em particular pelos Tribunais estaduais, seja em fase de eventual recurso, seja em sede de anulação de sentença.

    10. Se assim fosse, tal comando revelar-se-ia contrário às razões ... que explicam a obrigação constitucional de fundamentação das decisões jurisdicionais.

    11. Reconhecer a existência de um dever de fundamentar a sentença arbitral, mas reconhecer, simultaneamente, que esse dever se poderia cumprir de qualquer forma, com qualquer conteúdo e com qualquer grau de suficiência, significaria admitir fazer cair os processos arbitrais numa via intuicionista e empirista - e, portanto, hostil à objetividade e à racionalidade, perfeitamente contrárias ao que, em Estado de Direito democrático, se deve entender ser o exercício da jurisdictio.

    12. À luz do disposto na subalínea vi) da alínea a) do nº 3 do artigo 46.º da LAV, são seguramente de anular pelos Tribunais estaduais as decisões arbitrais às quais falte qualquer enunciação da matéria de facto ou das razões jurídicas que ditaram o resultado obtido.

    13. Mesmo contendo a sentença ou acórdão arbitral a enunciação desses factos ou a explanação dessas razões jurídicas, será ainda assim de invalidar o aresto cuja concatenação fáctica e jurídica se revele deficiente a ponto de o tornar ininteligível para os seus destinatários.

    14. Não se lê na decisão da matéria de facto ou da matéria de direito, ou nos seus esclarecimentos e correções, uma linha, sequer uma palavra, sobre a aptidão, idoneidade e suficiência do conteúdo de qualquer um dos cinco documentos em que o Tribunal deu com provado que a AEDL formou a sua convicção pré-contratual para sustentar essa convicção.

    15. O Tribunal não demonstrou na decisão ter apreciado se a convicção da AEDL se baseava em elementos de informação cujo conteúdo era apto, idóneo e suficiente a produzir o efeito invocado, como se a prova da invocação de certa convicção por um sujeito de direito se pudesse bastar pela simples demonstração de que ela existiu, sem curar de saber se era justificada no conteúdo dos elementos de facto que ele mesmo invocou como seu fundamento.

    16. No caso, essa tarefa, todavia essencial à compreensão da decisão estava sumamente facilitada, porquanto a AEDL invocou que a sua convicção se formara exclusivamente a partir de documentos que trouxe aos autos e não a partir de conversas ou outros elementos de informação oral cuja identificação e definição exata de conteúdo sempre se revelariam, por natureza, mais difíceis.

    17. No caso, os fundamentos documentais únicos - únicos, repete-se - da invocada convicção da AEDL estiveram fisicamente juntos aos autos, proporcionando amplo campo de debate e valoração sobre o respetivo conteúdo, ao qual se dedicaram as partes, nos articulados, na instrução e nas alegações.

    18. Da parte do Tribunal, nada se ouve, na decisão, a esse propósito e esse silêncio ensurdecedor, essa falta absoluta de fundamentação, compromete definitivamente a inteligibilidade da decisão e gera, portanto, a sua nulidade, à luz dos critérios acima identificados (e não daqueles que o Acórdão ora em crise fixou, muito mal).

      V. A ausência de fundamentação decorre de o Tribunal arbitral ter inexplicavelmente confundido um Tema de Prova, no caso o nº 9, com um Quesito, respondendo-lhe no registo sincopado e atomístico que era próprio da estrutura dos despachos saneadores anterior à revisão do Código do Processo Civil em 2013. Realmente, depois de ter concluído, na resposta ao Tema de Prova n.º 6.3, que ficou “Provada que o Agrupamento AEDL assumiu, na sua Proposta BAFO, que o Lanço IC2 entraria em serviço em 2011”, o Tribunal arbitral limitou-se, na resposta ao Tema de Prova nº 9, a dar como “Provado que o Agrupamento AEDL teve acesso, antes da apresentação da BAFO, pelo menos aos seguintes documentos, com relevância para a matéria deste ponto”.

    19. É justamente porque não se encontra na decisão do Tribunal arbitral a mais leve referência que possa auxiliar o leitor a compreender esta parte da decisão — função e exigência direta e imediata do dever de fundamentação - que ela é incompreensível e, por isso, nula.

      X. A mera identificação, pelo nome ou pela designação pela qual ficaram conhecidos nos autos, dos cinco documentos em que o Tribunal deu como provado que a AEDL fundou a sua convicção está muito aquém de permitir entender a decisão, assim limitada à natureza auto-justificativa desses parágrafos: ex nihilo nihil fit.

    20. O Tribunal arbitral ignorou o mais básico requisito das decisões judiciais ou arbitrais: colocado perante a tensão de duas realidades cognitivas dissonantes — a da AEDL, que alegava ter depositado confiança em certos documentos e que essa confiança encontrava justificação no respetivo conteúdo; a do Estado, que defendia a falta de suficiência, idoneidade e aptidão do conteúdo desses documentos para fundamentar a convicção daquela - abdicou de fundamentar e explicar a sua decisão em favor de uma delas, encontrando refúgio na auto-justificação, que veda ao leitor a compreensão da razão da decisão.

    21. O que falta na decisão arbitral é a explicação da razão pela qual o Tribunal fundou a sua convicção de que o conteúdo dos referidos cinco documentos era bastante para a AEDL ter formado uma certa representação da realidade, cuja frustração pelo Estado, após a assinatura do Contrato de Concessão, seria fundamento de reequilíbrio financeiro.

      AA. A segunda nulidade apontada pelo Recorrente decorre de o Tribunal ter...

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