Acórdão nº 465/19 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução18 de Setembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 465/2019

Processo n.º 829/2019

Plenário

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

(Conselheiro Claudio Monteiro)

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O Presidente da República vem, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, submeter à apreciação deste Tribunal, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, duas normas constantes do artigo 2.º do Decreto que procede à “Sétima alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, que regula a procriação medicamente assistida” (Lei da Procriação Medicamente Assistida, doravante «LPMA»), aprovado pela Assembleia da República em 19 de julho de 2019, que lhe foi enviado para promulgação como lei.

Tais normas são as seguintes:

a) a norma constante do artigo 2.º do Decreto, na parte em que mantém em vigor o n.º 8 do artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 59/2007, de 4 de setembro, 17/2016, de 20 de junho, 25/2016, de 22 de agosto, 58/2017, de 25 de julho, 49/2018, de 14 de agosto, e 48/2019, de 8 de julho, que passa a constar do n.º 13 daquele artigo 8.º, de acordo com a renumeração efetuada pelo Decreto em apreciação;

b) a norma constante do artigo 2.º do Decreto, na parte em que adita a alínea j) ao n.º 15 do artigo 8.º da citada lei.

2. É o seguinte o conteúdo das normas em causa:

«Artigo 2.º

Alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho

Os artigos 8.º e 39.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, passam a ter a seguinte redação:

Artigo 8.º

[…]

[…]

13 – (Anterior n.º 8).

[…]

15 – A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo CNPMA, onde consta, obrigatoriamente, entre outras, cláusulas tendo por objeto:

[...]

j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a presente lei;

[…]».

3. Segundo o requerente, a alteração legislativa operada pelas normas objeto do pedido que formulou «não cumpre a decisão do Tribunal Constitucional» constante do Acórdão n.º 225/2018, padecendo do vício de inconstitucionalidade material «por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa».

Concretizando os fundamentos do pedido, o requerente invoca, para o efeito, os seguintes argumentos:

«[…]

3º Através do citado Acórdão, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de diversas normas da referida Lei n.º 32/2006, de 26 de julho.

4º De entre estas, e com interesse para o caso vertente, importa reter o determinado na alínea b) da decisão:

“b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 8 do artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, em conjugação com o n.º 5 do artigo 14.º da mesma Lei, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, por violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa”;

5º Deste modo, no citado Acórdão n.º 225/2018, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do regime que permitia a revogação do consentimento dado pela gestante de substituição até ao início dos tratamentos de PMA, e não até à entrega aos “beneficiários” da criança assim gerada, dando assim maior relevância aos direitos da gestante.

6º Entendeu o Tribunal que a solução então em vigor era contrária à dignidade da pessoa humana e ao livre desenvolvimento da personalidade da gestante, impedida que estava de revogar o consentimento, bem como não assegurava o seu direito à interrupção voluntária da gravidez.

7º O conteúdo normativo que operava uma tal limitação, inconstitucional na decisão do Tribunal, resultava da remissão para o n.º 8 do artigo 8º para o n.º 5 do artigo 14º, na medida em que era desta remissão que decorria a aludida restrição.

8º É o seguinte o conteúdo das normas declaradas inconstitucionais:

“Artigo 8.º

Gestação de substituição

8 - No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes, ao regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição e dos direitos e deveres das partes, bem como à intervenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e da Ordem dos Médicos, é aplicável à gestação de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14.º da presente lei.

Artigo 14.º

Consentimento

4 - O consentimento dos beneficiários é livremente revogável por qualquer deles até ao início dos processos terapêuticos de PMA.

5 - O disposto nos números anteriores é aplicável à gestante de substituição nas situações previstas no artigo 8.º”.

9º Ora, como se vê, o conteúdo normativo declarado inconstitucional resultava da remissão do artigo 8º para o artigo 14º e, reversamente, do n.º 5 do artigo 14º para o artigo 8º. Deste modo, da decisão do Tribunal decorria a inconstitucionalidade de ambas as remissões, na parte em que implicava a impossibilidade de a gestante revogar o consentimento após o início dos processos terapêuticos de PMA.

10º No Decreto 383/XIII mantém-se em vigor o referido n.º 8 do artigo 8º, agora renumerado em número 13, é acrescentada a alínea j) ao número 15º do artigo 8º, e deixa-se intocado o artigo 14º, sendo certo que, quanto ao n.º 5, importa ter presentes os efeitos da inconstitucionalidade acima citada.

11º Com relevo para a questão vertente, é a seguinte a redação agora adotada para o artigo 8º:

“«Artigo 8.º [ ... ]

1

( ... )

13 - (Anterior n.º 8).

(...)

15 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo CNPMA, onde consta, obrigatoriamente, entre outras, cláusulas tendo por objeto:

( ... )

j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a presente lei.”

12º O número 8 do artigo 8º que o legislador agora expressamente retoma, determina expressamente a aplicação à gestação de substituição do disposto no artigo 14.º, o qual não é alterado pelo presente Decreto.

13º O artigo 14º acolhe, recorde-se, a revogabilidade do consentimento até ao início das terapêuticas de PMA e não, como havia considerado o Tribunal Constitucional, até à entrega da criança aos “beneficiários”.

14º Deste modo, nesta parte, a alteração legislativa não cumpre a decisão do Tribunal Constitucional, a qual era clara e precisa no seu âmbito.

15º Na verdade, da decisão que fez vencimento afigura-se resultar que uma solução de revogação do consentimento da gestante só será conforme ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade, caso possa ocorrer até à entrega da criança aos “beneficiários” o que, manifestamente, não sucede no caso do regime agora aprovado.

16º Nem se afirme, por outro lado, que tal resultado se alcança, inequivocamente, através do disposto na citada alínea j) do número 15º do artigo 8º, tal como aprovado pelo Decreto, já que apenas contém uma norma de remissão genérica para o conteúdo da Lei, desprovida de substância própria.

17º Acresce que a não alteração ao artigo 14º, cujo número 5 havia sido declarado inconstitucional, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários - entretanto esvaziado de conteúdo -, e a manutenção ao n.º 8 do artigo 8º, agora número 13, são suscetíveis de criar uma situação de incerteza para a criança, para os “beneficiários” e para a gestante, podendo produzir, eventualmente, uma insegurança jurídica, inconstitucional.

18º Dir-se-ia, assim, que a alteração “sub iudicio” não só pode manter, como, porventura, acentuar a violação inconstitucional, na visão do Tribunal, do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, na medida em que reforça a desproteção da gestante relativamente ao seu regime de revogação do consentimento, como pode criar uma situação de incerteza para todos os envolvidos e, desde logo, a criança.

[…]»

4. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), o Vice-Presidente da AR, em substituição do respetivo Presidente, ofereceu o merecimento dos autos.

5. Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2 da LCT e fixada a orientação do Tribunal, importa agora decidir, conforme previsto no artigo 59.º da mesma Lei.

II – Fundamentação

A. Conhecimento do pedido

6. Considerada a legitimidade do requerente, a circunstância de o pedido conter todas as indicações a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, da LTC e a observância dos prazos aplicáveis (artigo 278.º, n.º 3, da Constituição e artigos 54.º, 56.º, n.º 4, 57.º, n.ºs 1 e 2, e 58.º da LTC), nada obsta ao conhecimento da questão de constitucionalidade formulada nos presentes autos.

B. Normas a apreciar e respetivo enquadramento

7. Conforme referido pelo requerente...

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