Acórdão nº 663/19.3BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 30 de Agosto de 2019

Magistrado ResponsávelCRISTINA SANTOS
Data da Resolução30 de Agosto de 2019
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

O Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Instituto dos Registos e Notariado IP, ambos com os sinais nos autos, inconformados a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dela vêm recorrer, concluindo como segue: A – Recurso interposto pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros 1. A Secção Consular da Embaixada de Portugal em Nova Deli, assim como a qualquer outro Posto Consular, compete a receção e instrução dos pedidos de emissão ou renovação do Cartão do Cidadão, nos termos do art.° 49.° do Decreto-Lei n.° 71/2009, de 31 de março, o pedido é feito eletronicamente no Posto, sendo depois da responsabilidade do IRN, I.P. e da INCN a emissão e envio do respetivo Cartão do Cidadão para o local designado pelo Requerente do referido Cartão. Não têm, assim, os órgãos dos postos consulares (bem como, os do próprio Ministério ao qual pertencem estes serviços periféricos externos) qualquer interferência no domínio da identificação civil e emissão de cartões do cidadão, pois, em matéria de identificação civil e de emissão de cartões do cidadão, são competentes os órgãos do IRN, IP; 2. A douta Sentença enferma de erro no enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, de erros na aplicação do Direito relevante para a atuação administrativa do caso concreto, de violação do n.° 1 do artigo 109.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos quanto à possibilidade de uso da intimação, já que manifestamente não estamos perante uma situação de necessidade de tutela urgente de DLG. Sendo que a urgência se revela pelos factos articulados e a Autora só em 2019 veio intentar a presente intimação, ou seja ostensivamente não demonstrou, nem podia demonstrar ser a agora a emissão do cartão urgente, pois a. já tinha apresentado um primeiro pedido de cartão de cidadão em 2017 e b. o seu registo de nascimento data de 2015! 3. Conclui-se necessariamente que a Autora, aqui Recorrida, não prova a existência de urgência, porque se assim fosse já há muito teria tratado do cartão de cidadão e, no caso de não lhe ter sido emitido, teria já recorrido aos tribunais também há mais tempo. Além de que, se é verdade que está indocumentada e pode ser expulsa do país, esse suposto risco já se verifica desde 2015, isto é, a “urgência” tem cerca de 4 anos...

  1. Por outro lado e salvo o devido respeito que é muito, não pode a Entidade Demandante concordar com a aplicação do Direito relevante para a atuação administrativa na decisão ora posta em crise que considera que a expressão usada no artigo 12.° na Lei n.° 7/2007, de 05 de fevereiro: “de modo habitual e com liberdade de ortografia" permite que o titular do cartão de cidadão possa assinar de acordo com a forma como comummente assina o seu nome, da forma que entenda adequada e de acordo com a sua vontade, sem a sujeição a qualquer alfabeto padronizado.

  2. Com efeito, apesar de a Lei estipular liberdade de ortografia não quer dizer que se possa assinar com total liberdade sem se respeitar o alfabeto padronizado pela língua portuguesa, precisamente porque a lei usa a expressão ortografia (intrinsecamente ligada à língua e, consequentemente, ao seu alfabeto) e não grafia (ligada à livre representação fonética de uma palavra).

  3. Em suma, salvo o devido respeito, que é muito, errou a douta Decisão ao considerar, por um lado, que o meio processual era o próprio e que a Autora podia assinar como quisesse, sem respeitar a ortografia e a Lei portuguesas.

  4. Atentos os elementos alegados e as provas facultadas aos autos, o MIME defende e defenderá sempre, no exercício das suas atribuições, com fundamento e no limite da lei, os legítimos interesses do Estado Português e dos seus nacionais.

    *B – Recurso interposto pelo Instituto dos Registos e Notariado IP 1. O Recorrente considera que a interpretação e aplicação das normas legais que ao caso sub judice se impõem, não foi correcta nem pertinente, pelo que enferma, smo, a Douta Sentença recorrida de vício de violação de lei, e vício de interpretação e aplicação das normas legais à factualidade subjacente à pretensão contra si formulada pela Recorrida.

  5. O cartão de cidadão constitui um verdadeiro documento de cidadania - e porque assim é, inerente à condição de nacional de um Estado, neste caso, o Estado Português, sendo que no caso sub judice estamos perante uma situação de atribuição de nacionalidade portuguesa, a cidadã nascida em território estrangeiro, no contexto especial reconhecida por lei aos nascidos no "antigo Estado da Índia que declarem querer conservar a nacionalidade portuguesa" 3. A nacionalidade é o vínculo jurídico que liga uma pessoa a um Estado, mais sendo consentâneo na Doutrina e Jurisprudência dominantes, e consubstanciando princípio geral de direito internacional que, cada Estado é soberano para determinar as pessoas que considera seus nacionais, competindo estabelecer por meio de legislação própria as regras relacionadas com a atribuição e aquisição da sua nacionalidade.

  6. A concepção de identidade nacional, e de cidadania enquanto direito fundamental, importa pressupostos de relativa homogeneidade entre os elementos de determinada comunidade nacional, no que respeita aos factores essenciais da definição de tal identidade, como sejam, a língua, religião, cultura, valores...

  7. Tais pressupostos e ideais estão, também, de modo reforçado, subjacentes à lei que visou e visa conceder ou possibilitar a manutenção da nacionalidade portuguesa paira as pessoas que tinham "uma especial relação de conexão com Portugal", decorrentes do facto de serem naturais de territórios das designadas "ex-colónias" - tal como se verifica no caso da Recorrida.

  8. Mas, a nacionalidade é mais do que um mero estatuto jurídico-constitucional formal antes, e tal como pronunciado pelo TIJ, a nacionalidade é "um vínculo jurídico que tem por base um facto social de pertença, uma conexão genuína de vivência, de interesses e de sentimentos, em conjunto com a existência de direitos e deveres recíprocos." Sublinhados nossos 7. E, enquanto direito fundamental cidadania portuguesa, o direito/dever à emissão e titularidade ao cartão de cidadão é conformado por regras restrições legais, dentro dos limites constitucionalmente consagrados - regras estas que, de resto, se impõem e vigoram para todos os cidadãos portugueses - originários ou por via de naturalização.

  9. De acordo com o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos são iguais perante a lei, e "Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

  10. Por seu lado, estatui o artigo 14º da Lei Fundamental que "Os cidadãos portugueses que se encontrem ou residam no estrangeiro gozam da protecção do Estado para o exercício dos direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país." 10. Por fim, dispõe o nº 3 do artigo 11º da Constituição que "A língua oficial é o Português".

  11. No contexto jurídico-constitucional enformador do ordenamento jurídico nacional, somos a concluir, salvo o devido respeito por entendimento em contrário, que o conceito de "assinatura" em matéria de identificação civil - corolário do direito fundamental à cidadania - não poderá pressupor a possibilidade de utilização de qualquer outro sistema linguístico que não o alfabeto latino, já que nisso se baseia a língua oficial do Estado Português.

  12. Importa, ainda, considerar que nos termos do artigo lº da Lei nº 33/99, de 18 de Maio, a identificação civil tem por objecto a recolha, tratamento e conservação dos dados pessoais individualizadores de cada cidadão com o fim de estabelecer a sua identidade civil.

  13. A identificação civil rege-se pelos princípios da legalidade, de autenticidade, da veracidade, da univocidade e da segurança dos dados identificadores dos cidadãos.

  14. A assinatura que a Recorrida pretende fazer constar do respectivo cartão de cidadão parece ser composta apenas por elementos gráficos, não sendo identificável na mesma, a mínima correspondência com o nome que deverá reproduzir, mais sendo absolutamente ininteligível para todos os restantes cidadãos, entidades e instituições nacionais, pelo que não pode assegurar as finalidades da identificação civil que o cartão de cidadão, enquanto documento que concretiza o direito fundamental à cidadania; 15. O que é susceptível de se repercutir no interesse público e nos interesses soberanos do Estado Português, diminuindo os imperativos da segurança.

  15. Por outro lado, e também contrariamente à perspectiva em que o Douto Tribunal a quo assenta o juízo que formula nos presentes Autos, não podemos de todo perfilhar idêntico raciocínio exegético no que respeita à interpretação da norma constante do nº 1 do artigo 12º in fine da Lei nº 7/2007, de 05/02.

  16. Nos termos do artigo 9º da lei nº 7/2007, de 05/02, os apelidos e os nomes próprios do titular são inscritos no cartão de cidadão de harmonia com os vocábulos gramaticais que constam do respectivo assento de nascimento.

  17. Correspondendo o nome civil constante do cartão de cidadão ao fixado no assento de nascimento, e sendo a assinatura uma reprodução daquele, imposta atender às regras sobre a composição do nome constante do Código do Registo Civil; 19. A norma do artigo 103º do Código do Registo Civil determina que os nomes dos cidadãos portugueses, por regra, são os que constam da onomástica nacional ou os que foram adaptados gráfica e foneticamente à língua portuguesa; 20. Mesmo nos casos em que é admissível a utilização de nomes estrangeiros, os mesmos apenas são admitidos quando escritos de acordo com o alfabeto latino, ou transliterados, quando escritos com caracteres não latinos - cfr. o artigo 38º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.

  18. 0 nº 2 do citado artigo 12.ºda...

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