Acórdão nº 1677/16.0T8STB.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Julho de 2019

Magistrado ResponsávelRICARDO COSTA
Data da Resolução04 de Julho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça 6.ª Secção I. RELATÓRIO 1.

“AA, Lda”, exploradora de uma clínica de prestação de cuidados de saúde na área da medicina dentária, bem como outras actividades de saúde médicas e paramédicas, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo, uma vez procedente, a condenação do Réu ao pagamento da quantia de € 166.422,76, a título de danos patrimoniais. Em síntese, alegou que, em 30/05/2012, o R., sócio da Autora, a representante orgânica (gerente) e e sócia da Autora e outros outorgantes sócios e cessionários de quotas da Autora (v. certidão permanente, que faz fls. 132 e ss), celebraram um contrato de cessão de quotas relativamente às quotas da sociedade Autora, através do qual, ademais, o Réu se comprometeu a trabalhar na sociedade Autora por um período mínimo de 5 anos e se convencionaram as sanções para o incumprimento desse vínculo. Acontece que, a 6/3/2013, o R. deixou de trabalhar na A., tendo passado a prestar serviços noutra clínica localizada a uma distância muito próxima, em desrespeito do acordo que haviam celebrado, pelo que se fundava a indemnização nos termos contratualmente estipulados, ou seja, no montante de € 156.023,62. Mais se peticionou a condenação do R. no pagamento de € 10.399,14 atinente aos montantes que a A. teve de despender com a finalização de tratamentos iniciados pelo R. e pelos quais já havia sido remunerado.

  1. O R. apresentou contestação, deduzindo a excepção de caso julgado em relação ao pedido de pagamento de € 10.339,14, alegando que tal pedido havia sido previamente formulado em sede de contestação a processo de injunção intentada por si e apreciada em sentença, que considerou esse facto como não provado; no mais, invoca que a A. inviabilizou o exercício das suas funções como diretor clinico, o que tornou inviável a continuidade dos seus serviços como médico dentista. Para além disso, deduziu pedido reconvencional, onde pediu a condenação da Autora no pagamento da (i) quantia de € 44.830,02, correspondente à quebra de rendimento verificada face à cessação da prestação de serviços acordada, da (ii) quantia de € 600,00, correspondentes a 30% da quantia de € 2.000,00€, em falta em relação ao montante de € 5.000,00 relativos a trabalhos dentários finalizados anteriormente à cessão de quotas e que ainda não haviam sido liquidados por pacientes ou entidades protocoladas, da (iii) quantia de € 5.000,00 a título de danos morais, fundados na ansiedade psíquica e física que o acometeu, por ter sido diariamente confrontado com situações em que viu o seu nome envolvido de forma negativa, designadamente o seu bom nome profissional, assim como da (iv) quantia de € 10.339,14, respeitante à indemnização da má fé da Autora ao repetir o peticionado já “objecto de decisão judicial”. Concluiu pela improcedência da ação e procedência do pedido reconvencional (condenação no pagamento de € 60.769,16).

  2. A Autora apresentou Resposta à excepção de caso julgado e ao pedido reconvencional, pedindo em ambos os casos a improcedência.

  3. Convidada a Autora, em particular, a aperfeiçoar a petição inicial (fls. 124), tal não veio a ser admitido por extemporaneidade (fls. 131, verso).

  4. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual se proferiu despacho saneador, concluindo-se pela inexistência da excepção de caso julgado. Procedeu-se à fixação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova. Foi realizada audiência final em 6/11/2017, 5/2/2018 e 14/2/2018.

  5. A sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal julgou: “

    1. Parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido formulado pela Autora e consequentemente condena o R. a pagar-lhe a quantia de € 44.654,22.

    2. Totalmente improcedente por não provado o pedido reconvencional deduzido pela R., dele se absolvendo a Autora”.

  6. O Réu/Reconvinte, não se conformando com a sentença prolatada, dela interpôs recurso de apelação, visando o pedido de “a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o Apelante do pedido e que condene a Apelada nos exatos termos do peticionado na Reconvenção ou, quando tal não se entenda noutros que V. Ex.as entendam como adequados, seguindo o processo ulterior tramitação até final”, tendo em consideração que “[o] Tribunal não utilizou, ou interpretou erradamente, os artigos 342.º, 483.º, 484.º, 496.º, 798.º, 799.º e 800.º do CC e 574.º, n.º 2 do CPC” (Conclusão J), assim como, “[p]ara os efeitos do artigo 640.º, n.º 2 do CPC”, nos termos da Conclusão I, impugnando “os FP 19 e 29-a), os quais deveriam ter sido rectificados; e [dados] como provados os FNP I) a P) e R) e S) e passem a constar como Factos Provados e ter sido ainda dado como provado e aditado por relevante que: na vigência do contrato a Apelada foi condenada a pagar ao Apelante ou melhor à sociedade deste o valor de € 4780,19 (...)”.

    A Autora/Recorrida respondeu às alegações, pugnando pela improcedência e confirmação da decisão proferida pelo tribunal a quo, por um lado, e pela alteração do valor da indemnização que lhe fôra atribuída, devendo esse ser “calculado em função da remuneração média mensal auferida pelo R. no ano de 2011 que corresponde ao valor de 3.169,00”.

  7. Decidindo, o Tribunal da Relação de Évora julgou que: — quanto à delimitação do objecto do recurso, a questão suscitada nas contra-alegações – “o acerto na fixação/quantificação da indemnização” – se quedava fora do conhecimento da apelação, uma vez que “tendo a apelada ficado parcialmente vencida no pedido formulado contra o recorrente, restar-lhe-ia interpor recurso subordinado (n.º 1 do art. 633.º do CPC) para veicular as suas razões contra a decisão, o que, todavia, não fez em devido tempo (n.º 2 do mesmo preceito)”, pelo que se acordou em “não tomar conhecimento da questão suscitada nas contra-alegações da apelada”; — quanto à decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto (v. fls. 393--402), deveria: (i) modificar o facto provado sob 19, que passou a ter a seguinte redacção: “Após a celebração do contrato, CC assumiu a gerência da clinica”; (ii) modificar o ponto L) dos factos não provados, que passou a ter a seguinte redacção: “A A. pagou a quantia de € 2.000,00, relativa ao remanescente em falta da quantia de € 5.000,00”.

    (iii) rectificar o facto provado sob 29.a), tratando-se de lapso de escrita passível de rectificação (art. 249º do CCiv.), que passou a ter a seguinte redacção: “Foram efectuados pela Autora contratos com entidades que a Ordem dos Médicos Dentistas aconselhou a não serem efectuadas, em virtude de apresentarem diversas prestações gratuitas”; (iii) “não conhecer da alteração do ponto factual J) do quadro fáctico não provado” (por rejeição do recurso); (v) não conceder provimento ao mais impugnado e pretendido pelo apelante (levar ao quadro fáctico provado e aditamento); — quanto ao mérito da decisão de 1.ª instância, seria de “revogar a sentença impugnada no segmento em que absolveu a apelada do pedido de pagamento da quantia de € 600 (seiscentos euros) ao recorrente e, consequentemente, em condenar a recorrida a pagar ao recorrente essa importância; manter, no mais, a sentença apelada”.

    Usou nesta parcela a seguinte fundamentação, que se transcreve (fls. 409 e ss): “A questão a resolver centra-se no incumprimento do contrato que vigorou entre a apelada e o apelante.

    As partes não discutem do enquadramento jurídico fixado pela 1.ª instância e, de resto, não se vêm razões para discordar do entendimento de que a resolução da questão solvenda se deve fazer à luz dos preceitos que enformam o contrato de mandato (note-se que o contrato de prestação de serviços é aquele que melhor enquadra o regime de exercício de profissões liberais[1] e que a tal contrato se aplicam subsidiariamente as regras do contrato de mandato – art. 1156.º do Cod. Civil).

    Há, em concreto, que ter em conta a questão à luz da previsão do art. 1172.º do Cod. Civil, apesar de não ter sido esse o enquadramento convocado pelo reconvinte na reconvenção (n.º 3 do art. 5.º do CPC).

    A obrigação de indemnizar ali prevista constitui um contrapeso face ao exercício da faculdade de revogação conferida pelo n.º 1 do art. 1170.º do Cod. Civil[2] e é correntemente encarado como um caso de responsabilidade objectiva[3].

    Como se escreveu no Ac. STJ de 12.07.2018[4], a faculdade a que aludimos consiste em fazer cessar o contrato de mandato por vontade unilateral provinda do mandante ou do mandatário e “excepciona a regra constante do n.º 1 do artigo 406.º do mesmo diploma (inserindo-se, pois, na ressalva constante da parte final desse preceito) e que corresponde a uma tradição que remonta ao direito romano e que encontra expressão noutros ordenamentos jurídicos.

    Tal faculdade justifica-se tendo em atenção a natureza fiduciária do vínculo e o facto de o mesmo estar predominantemente orientado para a prossecução do interesse do mandante, não tendo cabimento mantê-lo vinculado a uma actividade que se afastou dessa finalidade.

    O exercício dessa faculdade é, em princípio, extensível ao contrato de prestação de serviços, dado que o recebedor pode, por exemplo, ter perdido a confiança no prestador”.

    Regressando ao caso em apreço, há primeiramente a precisar que foi o apelante/prestador de serviços que, em 7 de Março de 2013, comunicou, por carta, ao representante da apelada que deixaria de prestar serviços na clínica nesse mesmo dia, tendo efectivamente deixado de o fazer (pontos n.º 7 e 8 do elenco factual).

    Foi, pois, o prestador que se desvinculou do contrato prevalecendo-se da faculdade a que vimos aludindo.

    Daí que não tenha cabimento o recurso à previsão do n.º 2 do art. 1170.º do Cod. Civil – que respeita à revogação pelo mandante/recebedor nos chamados mandatos de interesse comum – para dirimir a questão solvenda, tanto mais que não é clara a existência de um interesse juridicamente relevante do prestador na prestação de serviços acordada[5].

    Afastada esta imprecisão, há que...

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