Acórdão nº 2382/17.6T8VNG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Dezembro de 2018
Magistrado Responsável | SOUSA LAMEIRA |
Data da Resolução | 19 de Dezembro de 2018 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO 1.
AA, divorciado, residente em …, V..., e BB, divorciada, residente em …, instauraram acção judicial contra o Banco CC, S.A., actualmente o Banco DD, S.A., sociedade anónima com sede em …, pessoa colectiva n.º …., alegando, em resumo: Em 2004 foi-lhes proposto pelo réu fazer uma aplicação para rentabilização do valor de € 400.000,00, tendo o réu decidido aplicar a totalidade do referido valor em obrigações “EE” sem o conhecimento dos autores, a quem não entregou previamente qualquer documentação informativa do produto, e sem que os autores tivessem dado qualquer ordem de subscrição do referido produto ao réu.
Desse modo, o réu incumpriu as instruções que lhe tinham sido dadas pelos autores, desrespeitou aquele que sabia ser o perfil de investidor dos autores, violou os deveres que sobre ele impendiam nos termos do disposto nos artigos 73.º a 76.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro), em especial o dever de informação previsto no artigo 77.º, números 1 a 5, do RGISCSF, e ainda os deveres de diligência, lealdade e transparência, não prestou aos autores a informação que lhe competia prestar relativamente ao produto que se propôs subscrever em seu nome e prestou aos autores informação falsa sobre o reembolso do capital investido.
Conclui pedindo que seja o réu condenado a pagar aos autores: a) a quantia de € 400.000,00, correspondente ao valor das obrigações “EE” subscritas pelo réu; b) a quantia de € 61.527,36 da diferença dos juros remuneratórios, referentes ao período compreendido entre 2010 e a presente data, que os autores deveriam ter recebido e dos que lhes foram pagos; c) a quantia de € 25.000,00, a título de danos não patrimoniais; d) juros moratórios vincendos desde a data de citação do réu até efectivo e integral pagamento.
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O R. contestou, por excepção e por impugnação.
Excepcionando, invocou a incompetência territorial do tribunal, a prescrição do direito dos autores, a caducidade do direito à anulabilidade do negócio por erro e o abuso do direito.
Por impugnação, sustenta que não foi fornecida informação falsa aos autores, que estes conheciam o produto que estavam a comprar, que lhes foi dada informação cabal sobre as obrigações em causa, que estas tinham garantia de reembolso de capital, o que é diferente da garantia da solvabilidade do emitente das obrigações.
Conclui pedindo a improcedência da acção.
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Os autores responderam às excepções, refutando-as.
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Após a normal tramitação dos autos, procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal e, a final foi proferida sentença «julgando a acção parcialmente procedente e condenando o réu a pagar aos autores a quantia de € 400.000,00 correspondente ao valor das obrigações, e juros moratórios desde a citação até integral pagamento».
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Inconformado o Réu interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação …, que, por Acórdão de 30 de Maio de 2018, decidiu «julgar o recurso procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida, absolvendo agora o réu do pedido».
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Os Autores interpuseram Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam as seguintes conclusões: DA VIOLAÇÃO OU ERRADA APLICAÇÃO DA LEI DE PROCESSO Da violação do disposto no artigo 662.º, número 1, do CPC I.
O douto acórdão recorrendo alterou a sentença relativamente aos factos que haviam sido dados como assentes sob os pontos 9., 16., 17., 18., 43., 44. e 46. da decisão sobre a matéria de facto.
II.
Em sede de fundamentação da decisão sobre cada um dos referidos pontos da matéria de facto, havia a primeira instância identificado como decisiva a seguinte prova produzida nos autos: ■ 9., 16., 17., 43. e 44. - prova documental e prova testemunhal, designadamente os depoimentos de FF, GG e HH - cfr. p. 20 da sentença; ■ 18. - prova testemunhal, em concreto os depoimentos de FF e GG - cfr. p. 21 da sentença; ■ 46. - prova testemunhal, em concreto os depoimentos de FF, GG, HH e II.
III.
O Venerando Tribunal da Relação alterou a decisão proferida sobre a referida matéria de facto com fundamento nos juízos que formulou a respeito, por um lado, da credibilidade de que deveria ser merecedor o depoimento da referida testemunha FF, e por outro, da concepção que fez do Recorrente enquanto cliente bancário, dos seus conhecimentos sobre produtos financeiros, sem quaisquer factos em que pudesse assentar firmemente tal concepção.
IV.
Não podia o douto acórdão recorrendo, sem mais, alterar a resposta a todos e cada um dos pontos da decisão sobre a matéria de facto impugnados pelo Recorrido em sede de apelação.
V.
O artigo 662.º, número 1, do CPC, dá inequívoca competência à Relação para modificar a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, usando as provas constantes dos autos; o pressuposto processual é o de “os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente [imporem] decisão diversa”, insusceptível de ser destruída por outra prova.
VI.
A alteração da decisão da matéria de facto deve ser realizada de forma ponderada, “(...) só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente” – ver Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de abril de 2015, disponível em http://www.dgsi.pt.
VII.
A Relação pode e deve modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder retirar dos meios de prova indicados pelos recorrente em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com ponderação de todas as circunstâncias e todos os restantes elementos de prova, um resultado diverso daquele retirado na sentença sob recurso.
VIII.
Os princípios da imediação e da oralidade impõem que a Relação que procede à reapreciação os meios de prova evite a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
IX.
O Tribunal a quo não procedeu à ponderação e confronto dos meios de prova indicados pelo Recorrido em sede de apelação – in casu, o depoimento da testemunha FF – com a globalidade dos elementos que integram os autos.
X.
Não o fez por referência aos diversos elementos de prova – documental e testemunhal – identificados na sentença de primeira instância, na motivação do juízo concretamente formulado a respeito de cada um dos pontos da decisão da matéria de factos impugnados pelo Recorrido em sede de apelação, ao que sempre estaria obrigado por força do disposto no número 1 do artigo 662.º do CPC.
XI.
O douto acórdão recorrendo limitou-se a destacar que a testemunha FF, tendo relevante experiência bancária, é também cunhado dos Recorrentes et pour cause todo o seu depoimento deve ser apreciado sob a suspeita da tendência para ajudar os Recorrentes a reaverem o dinheiro que investiram a seu conselho.
XII.
O Tribunal a quo esqueceu-se, designadamente, de relevar que a testemunha FF está de relações cortadas com a Recorrente BB, e que o conteúdo e sentido do seu depoimento o responsabiliza, directamente para com o Recorrido, enquanto sua antiga entidade empregadora, em eventual acção de regresso que esta venha a decidir intentar contra a testemunha FF caso decaia na presente acção.
XIII.
O douto acórdão recorrendo aplica a presunção natural de que, existindo relações de parentesco por afinidade entre a testemunha FF e os Recorrentes, o depoimento prestado por aquele sempre será parcial, tendencioso e, portanto, não poderá servir de fundamento à decisão sobre a matéria de facto tomada relativamente aos pontos da decisão da matéria de facto impugnados em sede de recurso de apelação.
XIV.
É também por suposta presunção natural que o douto Acórdão recorrendo conclui que, tendo o curso industrial, tendo sido empresário, e tendo Eur. 400.000,00 (quatrocentos mil euros) na conta, o Recorrente não podia ser “(...) o simplório em termos de relação com a banca que quer fazer crer na acção”.
XV.
Houvesse o Tribunal da Relação efectuado a comparação e o cotejamento de todos os elementos de prova, e não poderia ter deixado de verificar que, tanto a testemunha FF, como as testemunhas GG e HH se pronunciaram sobre a inexperiência e o desconhecimento dos Recorrentes relativamente à banca e aos produtos por esta comercializados.
Como o é qualquer pessoa que tenha uma empresa, grande ou pequena, de telecomunicações ou de venda de miudezas.
XVI.
O que levou a que pela primeira instância fosse dado como provado, sob o ponto 11. da decisão sobre a matéria de facto, que “[o]s funcionários da agência da Ré, quer em S…, quer em A…, conheciam as habilitações literárias dos Autores e a sua falta de conhecimentos relativamente às características essenciais dos produtos financeiros normalmente comercializados pelos bancos”.
XVII.
Facto que não foi impugnado e que não foi objecto de alteração pelo Tribunal a quo, e que impede toda a construção feita por esta na fundamentação da alteração da decisão de facto.
XVIII.
Não pode o tribunal de recurso, presumir, contra facto assente/provado e não impugnado, que o Recorrente era, afinal, um homem experimentado e conhecedor, relativamente à banca, às suas práticas, e às características dos produtos, daí extraindo ou nisso assentando toda a reapreciação da prova que faz, contra o facto assente de que a ambos os Recorrentes faltavam os conhecimentos relativamente às características essenciais dos produtos financeiros.
XIX.
Toda a reapreciação da matéria de facto tinha que ter como pressuposto aquele facto assente e não impugnado de que os Recorrentes eram, ambos, ignorantes em matéria de prática bancária...
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