Acórdão nº 495/14.5TJVNF.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 25 de Setembro de 2018

Magistrado ResponsávelACÁCIO DAS NEVES
Data da Resolução25 de Setembro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: AA, menor, representada por seus pais BB e CC, intentou ação declarativa comum contra DD, SA e EE, Lda., pedindo que estas fossem condenadas a pagar àquela: - A quantia de 25.000€, a título de indemnização por danos não patrimoniais (dores físicas e psicológicas); - A quantia de 15.000€, a título de danos não patrimoniais (dano estético); - E a quantia, a liquidar em incidente de execução de sentença, que vier a ter de despender com futuras intervenções cirúrgicas e tratamentos subsequentes.

Alegou para tal e em resumo que a A., de tenra idade, no dia 12.03.2011 introduziu a mão esquerda, através da grade de proteção, no interior de um aquecedor a gás que os pais adquiriram à 1ª R., e que havia sido produzido pela 2ª R., do que lhe resultaram dores e lesões corporais, e que tal acidente se dever a culpa das rés, pelo facto de o aparelho não cumprir as regras de segurança legalmente exigidas, designadamente quanto a crianças e no que concerne às temperaturas de superfície das suas partes exteriores.

As RR. contestaram, declinando a sua responsabilidade e imputando a culpa do evento exclusivamente aos pais da autora, por incumprimento do dever de vigilância – sendo que a 2ª R. ainda invocou a caducidade do direito.

A requerimento da 1ª R., foi chamada a intervir nos autos, a título acessório, a seguradora FF, S.A..

Realizada a audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, na qual a ação foi julgada parcialmente procedente, sendo a R. EE, Lda. condenada a pagar à A. AA a quantia de € 21.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da presente data e até integral pagamento, e sendo a R. DD, S.A. absolvida do pedido.

Recorrendo a R. EE, Lda de apelação, a Relação de Guimarães, por acórdão constante dos autos, revogou o decidido na sentença e absolveu aquela R. do pedido.

Inconformados, interpuseram os AA./apelados o presente recurso de revista, em cujas alegações apresentaram as seguintes conclusões: A. Está em causa nos autos uma situação em que uma criança ficou com a mão literalmente derretida (como consta dos factos provados) por contacto com a zona de queima de um aquecedor doméstico.

B. Ao contrário do decidido na primeira instância, entendeu-se inexistir qualquer obrigação de indemnizar do produtor, para o que foram assumidos no acórdão da Relação factos que não ficaram provados e, além disso, a ser certa a tese desse acórdão, ficaria sem qualquer função ou interesse a grelha de proteção do aquecedor, a qual devia ser de proteção.

C. Salvo o devido respeito, a tese da Relação assenta em pressupostos de factos que não estão provados, como se alcança nas notas de rodapé da página 19 do acórdão. D. Em primeiro lugar, onde se refere que ficou provado que a menor “se encontrava na sala e aí ficou sozinha”, acrescenta-se na nota de rodapé 3, que ficou sozinha, “sem vigilância”, o que não tem qualquer suporte na matéria de facto, tanto mais que, como se refere na nota de rodapé 4, se reconheceu que “não está apurado porquê, nem por quanto tempo” o pai se ausentou. E. Aliás, sobre isto sublinha-se que foi ouvido como testemunha um médico que afirmou categoricamente que o dano na mão da menor resultou de urna exposição muito curta a uma fonte de calor extremamente forte. F. Por ser assim é que, no ponto 9 da matéria de facto provado, se considerou provado que a mão da menor “derreteu”. G. Só que, quanto a isso, no ponto 7 das notas de rodapé do acórdão da Relação, afirma-se que essa palavra (“derreteu”) “não parece espelhar bem aquilo que realmente aconteceu”, ou seja, no acórdão da Relação, afastou-se a matéria de facto sem que esta tenha sequer sido objeto de recurso. H. Ao não ter ficado provado o motivo e por quanto tempo o autor se afastou, não pode assumir-se que violou o seu dever de vigilância. I. Na verdade, por um lado, não é possível que uma criança tenha sempre em si os olhos de um adulto e, por outro, qualquer pessoa normal assume que as advertências de segurança em relação a crianças tem como razão o perigo de asfixia. J. Em segundo lugar, o acórdão da Relação falhou ainda quando retirou qualquer valor ou função à grelha protetora do aquecedor. K. Na tese do acórdão da Relação, até parece normal que um aquecedor faça derreter uma mão e resulta que a grelha tem uma função insignificante, ou seja de “barreira sinalizadora”. É essa a expressão usada a fls. 23 do acórdão. L. A função básica de um aquecedor é aquecer, pelo que afastar a obrigação legal de as medidas de segurança terem de possibilitar um “tempo de reação adequado” em relação a essa função central é absurdo e ilegal. M. O acórdão da Relação falha ainda ao considerar que não eram possíveis outras medidas técnicas e funcionalmente exequíveis que permitissem afastar o perigo em causa -vide primeiro parágrafo de fls. 27 do acórdão. N. Ao contrário do entendido pela Relação, o aquecedor tem defeito, sublinhando-se que, no âmbito da responsabilidade do produtor, o conceito de produto defeituoso tem uma definição própria. O. Sobre esta matéria, adere-se à fundamentação da sentença da primeira instância, cujo teor se dá aqui por reproduzido, a qual tratou a questão de forma mais aprofundada completa e fundamentada. P. A responsabilidade da ré resulta da aplicação do disposto no DL. 383/89, particularmente dos seus artigos 1º, 4º e 5º, bem como da Lei 24/96, particularmente do seu artigo 12 e da Diretiva 2009/142/CE.

Q. É ponto assente, além do mais, que o aquecedor estava ser utilizado para o fim a que se destina, sublinhando-se, como na decisão da primeira instância: “Assim, decorre da letra daquele preceito que, no que concerne às superfícies ou partes que intervenham na função de transmissão do calor - designadamente, do painel incandescente onde a menor AA colocou a mão -, aquela diretiva prevê a possibilidade de as mesmas atingirem valores de temperatura aptos a gerar perigo. Percebe-se que assim seja, sob pena não atingindo o aquecedor temperaturas elevadas nessas partes, o mesmo ser absolutamente imprestável para o efeito para o qual foi construído - o aquecimento do meio ambiente Porém, mesmo em relação a essas partes que intervêm na função de transmissão do calor, tais perigos não podem deixar de, na medida possível, ser minorados, designadamente, no que se refere às crianças, “tendo em consideração um tempo de reação adequado”.

Este “tempo de reação adequado” reportar-se-á quer à própria criança, quer ao adulto que a esteja a vigiar durante o período de funcionamento do aparelho.

Neste ponto - onde reside, cremos, o cerne da questão em apreço nos autos - , entendemos que as características do aparelho em causa não asseguraram aquela exigência legal referente “ao tempo de reação adequado”.

Mais: tais exigências - de segurança - seriam facilmente asseguradas. Vejamos mais demoradamente.

Resultou provado que a grelha de proteção da zona incandescente aposta naquele aquecedor tem 35 cms de comprimento e 23 cms de altura, sendo composta por 12 barras na horizontal e 4 na vertical. As células assim criadas pelas aludidas barras horizontais e verticais apresentam, cada uma delas, 2 cms de altura e 9 cms de comprimento.

Ora, entendemos que seria manifestamente viável que a “malha” de proteção criada por tais barras fosse mais “apertada”, dessa forma impedindo o seu atravessamento pelos dedos das crianças. Não obstante, ainda que tal impedimento de acesso não fosse total, tal estreitamento da “malha” sempre impediria a aproximação dos dedos à placa incandescente, ainda que estes transpusessem parcialmente tal grelha, na medida em que, anatomicamente, a extremidade dos dedos (a “falangeta”) tem menor diâmetro que a sua base (a “falange” proximal).

Note-se que tal “apertamento” da grelha não implicaria a obturação total da fonte de calor proveniente da parte incandescente (obstrução integral esta que impediria o normal funcionamento do aparelho - cfr. facto provado nº 32). Efetivamente, nada nos permite afirmar que a implantação de uma grelha com uma “malha” mais apertada impedisse o normal funcionamento do aparelho.

Além disso, ficou provado que da aludida grelha à placa de cerâmica de aquecimento sita no interior do aparelho distam cerca de 6 cms da sua parte central e 5 cms das partes laterais.

Ora, nada impediria que tal grelha fosse construída e aplicada no aparelho de forma a ficar mais afastada da placa de aquecimento, sendo certo que a criação de um relevo exterior nessa grelha, que implicasse um afastamento de mais 6 cms ao já existente, se revelaria suficiente para impedir o contacto dos dedos com a placa incandescente. Assim se evitaria, de uma forma facilmente exequível, que os dedos das crianças, ainda que penetrassem tal grelha, entrassem em contacto directo com a placa de cerâmica incandescente.

Em resumo, se no aparelho em causa tivesse sido colocada uma grelha cuja malha fosse mais apertada e se esta grelha se encontrasse a uma distância superior da placa de cerâmica incandescente, certamente que o intervalo de tempo necessário para a “reação adequada” prevista naquele preceito seria superior. Mais...

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