Acórdão nº 2978/15.0T8FAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Julho de 2018

Magistrado ResponsávelM
Data da Resolução12 de Julho de 2018
EmissorTribunal da Relação de Évora

Sumário: 1. As cláusulas de um contrato de seguro que cobre os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva de segurado que contraiu um empréstimo bancário para aquisição de habitação, estão sujeitas ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, nomeadamente às regras relativas ao cumprimento dos deveres de informação e de comunicação, e às que proíbem a inserção de cláusulas contrárias ao princípio da boa-fé.

  1. Uma cláusula que faz depender a verificação do risco de invalidez absoluta e definitiva da necessidade permanente de recurso à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente, é atentatória do princípio da boa-fé.

  2. Preenche o conceito de invalidez absoluta e definitiva uma incapacidade permanente de 66,6422% que torna a lesada incapaz para o exercício da sua profissão habitual de funcionária administrativa e determina a correspectiva perda de remunerações.

  3. Face ao Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, a omissão negligente de patologias preexistentes à subscrição do contrato de seguro apenas permite ao segurador invocar a não cobertura do sinistro caso se demonstre o nexo de causalidade entre a informação inexacta ou omitida pelo segurado e o sinistro.

    Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo Central Cível de Faro, (…) e (…) demandaram, em 27.11.2015, (…) Vida – Companhia de Seguros, Lda., pedindo a condenação desta no pagamento à beneficiária Caixa de Crédito Montepio Geral do valor que estiver em dívida nos termos do contrato de mútuo, no momento do pagamento, bem como no pagamento aos AA. da quantia a liquidar correspondente aos valores pagos ao Montepio, no âmbito do contrato de mútuo, desde 26.02.2015 até efectivo cumprimento da obrigação anterior por parte da Ré.

    A causa de pedir reside na celebração de um contrato de seguro denominado Plano de Protecção ao Crédito à Habitação, contratado na sequência da concessão de um mútuo hipotecário para aquisição de habitação própria e permanente, e na circunstância de à A. (…) ter sido atribuída uma incapacidade permanente parcial de 78%.

    Na contestação, a Ré argumenta que não ocorre a invalidez absoluta e definitiva que permitiria o accionamento da apólice. Nesta peça nada se refere quanto à omissão de patologias preexistentes à data de subscrição do seguro.

    Foi dispensada a audiência prévia – em despacho de 25.02.2016 – e realizada perícia médica à A..

    Esta perícia consta de dois relatórios preliminares, elaborados em 05.09.2016 e em 02.01.2017, contendo a história do evento, a entrevista realizada à A., os dados documentais já existentes, o estado actual, o exame objectivo e os exames complementares de diagnóstico realizados; e de um relatório final, datado de 13.06.2017 mas recebido em juízo a 13 do mês seguinte e notificado às partes por comunicações electrónicas expedidas em 14.07.2017, contendo também a avaliação das doenças e sequelas existentes, o seu enquadramento na TNI, a fixação da incapacidade e a resposta ao quesito formulado.

    Por despacho de 10.07.2017, notificado por comunicação electrónica expedida nessa mesma data, foi designada data para a audiência final.

    Nos 10 dias seguintes a essa notificação, os AA. apresentaram articulado superveniente, referindo terem procedido à alienação do imóvel e pago do seu bolso o remanescente do mútuo contraído junto do Montepio Geral, motivo pelo qual alteraram o seu pedido, desta vez no sentido da Ré pagar-lhes, no âmbito do contrato de seguro celebrado, a quantia de € 251.600,39.

    Admitido este articulado, a Ré respondeu no sentido de não ocorrer o sinistro que permitiria o accionamento da apólice.

    Já na audiência final, ocorrida em 26.09.2017, também a Ré deduziu articulado superveniente, arguindo a omissão pela A. de intervenções cirúrgicas ocorridas em 2005 e 2008, anteriores à celebração do contrato de seguro, motivo pelo qual arguiu a sua anulação.

    Respondendo, os AA. argumentaram que era intempestivo tal articulado, pois tais intervenções cirúrgicas eram conhecidas da Ré desde antes da propositura da causa ou, pelo menos, desde data anterior ao despacho que designou a data da audiência final, que o contrato de seguro já se encontrava extinto, pelo que não podia ser anulado, e que não ocorriam os factos que justificavam tal pretensão.

    Realizado o julgamento, foi proferida sentença absolutória, motivo pelo qual os AA., inconformados, recorrem e concluem: a. O facto provado n.º 18 deve ser alterado de forma a fixar-se que a data do conhecimento pela Ré da operação ao útero foi a da notificação do relatório pericial de fls. 96, em 08/09/2016, por conter esse relatório a notícia da referida operação, precisamente nos mesmos termos que foram depois repetidos nos relatórios periciais posteriores, nomeadamente no de fls. 162.

    1. O facto provado n.º 31 deve ser alterado de modo a reflectir fielmente a conclusão do relatório pericial, de que a Autora está limitada no exercício de actividades correspondentes aos seus conhecimentos e capacidades, não somente por não poder desenvolver esforços físicos significativos, como já lá consta, mas também por apenas o poder fazer com carácter parcial.

    2. A situação pessoal da Autora, tal como apurada no processo, baseada na opinião do autor do relatório pericial de fls. 162, corresponde precisamente à previsão da cláusula ITP, que deve ter-se como incluída no contrato de seguro, na medida em que a Autora está incapacitada total e definitivamente de exercer a sua profissão, bem como quaisquer outras actividades lucrativas correspondentes aos seus conhecimentos e capacidades.

    3. Com efeito, se se apurou que a Autora apenas poderia exercer outras actividades com carácter parcial e sem desenvolver esforços físicos significativos, e porque isso não permite o exercício normal da profissão, por impor limitações inexistentes e inaceitáveis no mercado de trabalho, tal situação equivale, na economia da cláusula ITP, e tal como a entenderia um declaratário normal, precisamente à situação de incapacidade que faz surgir a responsabilidade da seguradora.

    4. A cláusula ITP deve ser interpretada do modo mais favorável à Autora, por se tratar de norma imposta pela Ré e, nesse sentido, não é admissível que se interprete a mesma como considerando capaz para o exercício profissional uma pessoa que não pode desempenhar nenhuma actividade lucrativa (i.e.

      , uma profissão) a não ser “com carácter parcial e sem desenvolver esforços físicos significativos”, pois não existem, nem foram concretamente indicadas, actividades lucrativas, ou profissões, onde tais restrições ou limitações sejam aceitáveis.

    5. Aliás, o critério de incapacidade usado para considerar a Autora como incapaz para o exercício da sua profissão, deve ser o mesmo usado para julgar da sua (in)capacidade para o exercício de outras actividades lucrativas, e assim, do mesmo modo que não se considerou a Autora capaz para o exercício da sua profissão, desde que a exercesse de forma parcial e sem esforços físicos, não se deve considerar a Autora capaz para o exercício de outras profissões, se isso apenas for possível com aquelas restrições, como é aqui o caso.

    6. Assim sendo, a Autora preenche a previsão contratual inscrita na referida cláusula ITP, pelo que a Ré está obrigada a indemnizá-la nos termos do contrato.

    7. Finalmente, a Ré não pode anular o contrato de seguro com base na regra do art. 25.º da Lei do Contrato de Seguro (Dec. Lei 72/08, 16/4), pois não alegou a superveniência do seu conhecimento dos factos alegados no articulado superveniente que apresentou em 26 de Setembro de 2017; apresentou o referido articulado fora de prazo; exerceu o seu alegado direito de anulação quando o mesmo já estava caducado, nos termos do art. 287.º n.º 1 do Cód. Civil; e não alegou nem provou o dolo da Autora, sendo certo que este não se presume, nem decorre do mero facto objectivo de o questionário não conter informação sobre a operação ao útero.

      A resposta sustenta a manutenção do julgado.

      Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

      Da impugnação da matéria de facto Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – artigo 607.º, n.º 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.” Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].

      Por outro lado, o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

      Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.

      Da análise das conclusões, os AA. colocam em discussão duas questões relativas à fixação da matéria de facto provada, sendo que quanto à primeira delas, relativa ao facto n.º 18, entendem que deve fixar-se que a data do conhecimento pela Ré da operação ao colo do útero foi a da notificação do relatório pericial de fls. 96, em 08.09.2016.

      A primeira instância entendeu fixar o conhecimento dessa operação aquando da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT