Acórdão nº 657/08.4TABGC.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 22 de Outubro de 2012

Magistrado ResponsávelJO
Data da Resolução22 de Outubro de 2012
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os juízes da secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, I - RELATÓRIO 1. No processo nº 657/08.4TABGC.P1 do 2º juízo do Tribunal Judicial de Bragança, procedeu-se a instrução requerida pelo assistente Francisco J..., e, após debate instrutório, o Mmo juiz decidiu pronunciar o arguido João R...

pelo cometimento em autoria material de um crime de abuso de poder, previsto e punível pelo art.º 14.º, 26.º e 382.º do Código Penal e o arguido ANTÓNIO N...

pelo cometimento em autoria material de um crime de desobediência previsto e punido pelas disposições conjugadas do n.º 3 do art.º 127.º e n.º 2 do art.º 159.º, ambos do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e ainda pela alínea a) do n.º1 do art.º 348.º do Código Penal e de um crime de abuso de poder previsto e punido pelo art.º 26.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, em concurso aparente com um crime de abuso de poder previsto e punido pelo artigo 382.º do Código Penal.

  1. A decisão instrutória, proferida a 20 de Dezembro de 2011, tem o seguinte teor (transcrição de fls. 1072 a 1108, 5.º volume): “No despacho final de encerramento do inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido JOÃO R...

    imputando-lhe a prática do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º, do CP.

    Em simultâneo, o arguido ANTÓNIO N...

    viu ser arquivado o inquérito na parte em que era denunciado pela prática do crime de abuso de poder.

    Quanto ao crime de desobediência de que vinham denunciados ambos, o arguido JOÃO R...

    viu ser arquivado o inquérito nesta parte. Já quanto ao arguido ANTÓNIO N...

    , em síntese, o Ministério Público entendeu que a sentença a proferir nos autos principais e que confirme a providência cautelar decretada configura condição objectiva de punibilidade, sendo inconstitucional a interpretação segundo a qual a conduta de violação da providência cautelar é criminalmente punível sem que a providência tenha sido confirmada nos autos principais. Deste modo, determinou-se que fosse extraída certidão do processado para novo inquérito que aguardaria o trânsito em julgado da decisão final proferida no âmbito do processo que corria termos no TAF de Mirandela.

    * Mais tarde, porém, neste inquérito que veio a ser autonomizado foi proferido despacho final de arquivamento.

    * Depois de incidências várias, e por estarem na mesma fase (foi requerida instrução nos dois processos), foi proferido despacho de conexão dos processos.

    Posteriormente, declarou-se aberta a fase de instrução.

    * O assistente Francisco J...

    inconformado com os dois despachos de arquivamento, veio apresentar requerimento de abertura da instrução, pedindo que o arguido ANTÓNIO N...

    seja pronunciado pela prática do crime de desobediência simples p. e p. pelo art. 127.º, n.º 3, e 159.º, n.º 2, do CPTA, e art. 348.º, n.º 1, a), do CP.

    Mais pede que o arguido ANTÓNIO N...

    seja pronunciado pela prática do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 26.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16/7, e em concurso aparente com art. 382.º, do CP, a que acresce a pena acessória de perda do mandato inscrita no art. 29.º, f), da Lei n.º 34/87.

    Quanto ao primeiro crime, em síntese, considera que os autos possuem todos os elementos probatórios que permitem inferir a forte indiciação da prática do mencionado crime, mais alegando que deve ser efectuada uma destrinça entre o crime de desobediência legal e o crime de desobediência funcional, sendo que só neste se exige a cominação expressa da prática do crime.

    Quanto ao segundo crime, requereu uma serie de diligências probatórias por forma a concluir-se pela autoria do crime.

    *Por sua vez, o arguido JOÃO R...

    inconformado com o despacho de acusação, veio apresentar requerimento de abertura da instrução, pedindo que não seja pronunciado pela prática do crime de abuso de poder por inexistirem indícios suficientes da prática do mesmo.

    Também requereu a produção de prova.

    *Declarada aberta a instrução, o arguido João R... prestou novas declarações procedeu-se à inquirição das pessoas indicadas nos dois requerimentos de abertura de instrução e de outra pessoa mais tarde requerida pelo assistente.

    Foi solicitado o envio da certidão do procedimento administrativo que correu termos no Município de Bragança.

    *Afigurando-se desnecessária a realização de outras diligências instrutórias, procedeu-se ao debate instrutório, o qual decorreu com integral observância de todas as formalidades legais.

    *O tribunal é competente.

    A instrução foi requerida por quem tem legitimidade.

    Inexistem quaisquer nulidades, ilegitimidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

    *Cumpre apreciar e decidir.

    * A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, do CPP).

    Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia (art. 308.º, n.º 1, do CPP).

    Em face destes normativos, verifica-se que o juiz de instrução deve guiar-se pelos mesmos critérios que levam o Ministério Público a acusar ou a arquivar. Assim, é à luz dessa bitola que, na instrução, se pronuncia ou não o arguido.

    Deste modo, é essencial e extremamente relevante fazer um apelo à produção doutrinal processual penal relativa ao art. 283.º, n.º 1, do CPP. Este preceito estabelece que só se deduz acusação se forem recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Já o art. 283.º, n.º 2, do CPP, determina que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Como se depreende da redacção deste preceito, o juízo a formular caracteriza-se por ser retrospectivo (juízo em face da prova realizada acerca de factos passados) e, ao mesmo tempo, ser prospectivo (suposição acerca da produção de prova a realizar no julgamento – No entanto, porque virado para algo que ainda não aconteceu, este juízo de prognose deve fundar-se em premissas muito credíveis, a raiarem a certeza, excluindo-se desta sede os dados estatísticos, porquanto este juízo é jurídico-normativo).

    Decorre igualmente tratar-se de uma decisão de mérito. Isto é, trata-se, obviamente, de uma decisão de facto e de uma decisão de direito (porque, para o aplicador, eles são hermeneuticamente incindíveis e em círculo) e funcionalmente voltada para a qualificação de um facto como crime e seu futuro sancionamento. Nas palavras de FERNANDA PALMA, “Acusação e pronúncia num direito processual penal de conflito entre a presunção de inocência e a realização da justiça punitiva” in I Congresso de Processo Penal, Almedina, p. 120 e passim, exige-se a antecipação de um juízo de culpa, pelo que se trata de um juízo normativo. Acusa-se ou pronuncia-se porque se considera o arguido culpado e não com base numa qualquer probabilidade sociológica, estatística ou meramente por razões de cautela.

    Como se sabe, a leitura daquele preceito tem gerado alguma discórdia no campo da processualística criminal. Por um lado, leva-se o arguido a julgamento quando há possibilidade de o arguido ser condenado – tese mínima –, por outro, leva-se o arguido a julgamento quando é razoável supor que será condenado – tese intermédia (por último na esteira desta corrente PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, 2008, p. 332: indícios suficientes dos factos da acusação são as razões que sustentam e revelam que é mais provável que os ditos factos se tenham verificado do que não se tenham verificado) com reconhecido forte apoio literal no art. 283.º, n.º 2, do CPP – e, para outros ainda, leva-se o arguido a julgamento somente quando há forte possibilidade de a condenação ocorrer – tese forte.

    Ora, somos dos que pensam que a autoridade judiciária competente, não se tendo convencido, por inteiro, da prática de um ilícito criminal, não deve levar o arguido a julgamento. Não se vê razões para o levar quando se possui dúvidas insanáveis acerca da sua culpabilidade (Referimo-nos às dúvidas não aceitáveis, pois basta, para o decisor, lograr convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Uma coisa é a verdade processual, outra a verdade absoluta – inalcançável), pois ficar-se-ia, dessa forma, na expectativa, pouco plausível, do julgador, num processo de estrutura acusatória – art. 32.º, n.º 5, da CRP (logo distinto do acusador e tematicamente vinculado), ser persuadido.

    Não se considera também despiciendo relembrar o carácter “criminógeno” do julgamento e o próprio princípio da presunção de inocência que também vigora nas fases processuais anteriores ao julgamento, se bem que em termos um tanto ou quanto mitigados (isto é, trata-se de um princípio que vigora em todo o processo penal. Para o TEDH, vale até fora do processo. Disso nos dá conta HENRIQUES GASPAR, “Os novos desafios do processo penal no século XXI e os direitos fundamentais (um difícil equilíbrio)” in RPCC, 15, 2005, p. 264, mas a sua intensidade varia de fase para fase, consoante o fim de cada uma destas, pelo que também se trata de um princípio teleologicamente vinculado).

    Todas estas razões, por efeito, levam-nos a optar pela tese que sufraga um entendimento mais exigente quanto ao conceito de indícios suficientes. Tomamos partido por esta corrente pelos motivos invocados, mas também por a considerarmos mais de acordo com os interesses em jogo, com o princípio do processo equitativo, com a estrutura acusatória e com o Estado de direito democrático. Tudo valores e princípios...

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