Acórdão nº 235/15.1T8VCT.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 05 de Novembro de 2015

Magistrado ResponsávelJOS
Data da Resolução05 de Novembro de 2015
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO Em escritura pública de justificação notarial outorgada no dia 28-10-2014, celebrada num Cartório de Viana de Castelo, a aqui ré e apelada AA, “declarou que é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, do seguinte bem: Sepultura Perpétua nº …, no Cemitério Paroquial de Barroselas (…) detentora do Alvará de Concessão número quarenta e seis (…) titulado em nome de herdeiros de Josefa da Conceição Gomes de Miranda”, declaração esta a que se segue, no texto da escritura, o seguinte: “…ainda que consigno eu Notária, nos termos do direito público, aplicável, detendo apenas um direito real administrativo de gozo, ocupação ou utilização privativa e, assim, a título necessariamente resolúvel e resgatável, como direito real limitado que é”.

E ali continuou a justificante a declarar: “Que por óbito de sua avó materna, Josefa …, ocorrido em 06-07-1971, os seus pais (…), a sua tia materna (…) e seus tios (…) procederam à partilha verbal não formalizada, por volta do ano de 1991 (…), a acima identificada sepultura foi adquirida por sua mãe Maria …. Que, no ano de 1992 (…), os seus pais Maria … e marido (…) doaram à ora justificante AA (…), a indicada sepultura, sem que, no entanto, ficasse a dispor de título formal que lhe permita o respectivo averbamento em seu nome. Que nesta sepultura foram sepultados os restos mortais de seus avós Boaventura (…) e Josefa … (…), dos seus pais (…) e de seu marido António …, falecido em 22-09-2004. Que efectivamente sempre zelou, cumprindo com todos os regulamentos do cemitério, mantendo-a limpa e asseada, visitando-a em homenagem de saudade pelos que partiram e jamais abandonando esta Sepultura Perpétua, na qualidade de sua legítima dona, com a convicção de exercer um direito próprio, pagando as respectivas quotas, taxas e multas; Que estas declarações que presta para todos os efeitos legais, designadamente para averbamento em seu nome, na Junta de Freguesia (…), da transmissão e sua concessão, atentas as características da invocada posse e o espírito que presidiu à sua manutenção que, se não origina um verdadeiro direito de propriedade por usucapião, dado o tipo de bem em causa, como acima referido, origina ou mantém a aquisição e consequente transmissão de um direito limitado, permitindo o gozo da Sepultura Perpétua, continuação do regime de concessão, enquanto a ora justificante não o abandonar.” No texto da escritura não se distinguem, com nitidez, as declarações prestadas pela própria justificante das ali entendidas verter pela Notária. Aqui, como noutros passos adiante, os sublinhados são de nossa iniciativa.

Publicitado tal acto, veio a interessada autora BB, em 16-01-2015, deduzir, no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, contra a dita justificante ré, esta acção declarativa de simples apreciação negativa.

Nela alegou, em suma, que não são verdadeiras as declarações por esta prestadas na escritura, nunca houve partilha alguma, o bem permanece como património comum da herança de Josefa … titulada pelos herdeiros, todos descendentes, logo nenhuma doação poderia ter feito a mãe da justificante. A sepultura dos restos mortais de seus pais e, depois, de seu marido foi feita mediante autorização solicitada aos restantes herdeiros e por estes dada e, neste último caso, a título precário. No mais impugnou, por incorrectos ou inverdadeiros, os actos de alegada posse. Concluiu, pois, que não assiste à ré o direito a que esta se arroga.

Pediu, em consequência, que, julgando-se procedente a acção, se: a) Declare impugnado, para todos os legais efeitos, o facto justificado na escritura de 28-10-2014 (…) referente à invocada aquisição e transmissão por usucapião de um direito limitado de gozo da Sepultura Perpétua identificada em epígrafe; b) Declare ineficaz e de nenhum efeito a dita escritura de justificação, de modo a evitar que a ré, através daquele instrumento, averbe quaisquer direitos sobre a indicada Sepultura Perpétua; c) Declare que não assiste à ré o direito invocado na dita escritura; d) Ordene o cancelamento de quaisquer registos, ou simples averbamentos operados com base na escritura aqui impugnada.

Este pedido e a respectiva causa de pedir, face à particular natureza da acção – declarativa de simples apreciação negativa – e do respectivo objecto definido por aqueles elementos revestem-se, apesar da dificuldade em defini-los, de especial importância, por ser em função deles que, como se dirá adiante, deve discernir-se a competência material aqui questionada.

A ré, contestando, impugnou a factualidade alegada pela autora em contrário da por si declarada na escritura de justificação, reafirmou os actos nesta exarados – sucessão mortis causa e doação –, esclareceu que, através dela, pretendeu justificar ser detentora de um direito real administrativo de gozo, ocupação ou utilização privativa da sepultura (transmissível) mediante a invocação da usucapião, asseverou terem sido praticados e estarem verificados os declarados actos alusivos ao corpus e ao animus da posse e, assim, preenchidos os requisitos da aquisição do “uso e fruição” do pretendido direito concessionado, de tudo concluindo que deve a acção ser julgada improcedente e, por isso, absolvida do pedido.

Após, foi proferido despacho saneador, nele o tribunal tendo oficiosamente, ao conhecer da respectiva excepção dilatória, declarado a sua incompetência absoluta em razão da matéria e absolvido a ré da instância, por entender, em suma, aqui se destacando os passos que julgamos mais significativos do percurso decisório empreendido, o seguinte: “Para além das relações jurídicas stricto sensu, constituídas entre particulares e a administração, e que conferem aos particulares direitos subjetivos determinados, com as correspetivas obrigações do lado da administração pública, os particulares ocupam em consequência da atividade administrativa exercida em cumprimento da prossecução do interesse público – artigo 266º da Constituição da República Portuguesa – determinadas posições jurídicas subjetivas, que lhes conferem, direitos ou interesses legalmente protegidos, tutelados pela Constituição – artigo 268º, nº. 4, da Constituição da República Portuguesa – e pela legislação administrativa, nomeadamente através dos meios judiciais específicos da jurisdição administrativa. A apreciação da existência, e do âmbito desses direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos, depende exclusivamente da apreciação das normas de direito administrativo que os atribuem.” […] “Conforme já foi referido, a autora pede que se declare impugnado o facto justificado na escritura de 28 de outubro de 2014, identificada no artigo 1º da petição inicial, referente à invocada aquisição transmissão por usucapião de um direito limitado de gozo da sepultura aí identificada; declarar ineficaz e de nenhum efeito a dita escritura de justificação, de modo a evitar que a ré, através daquele instrumento, averbe quaisquer direitos sobre a indicada sepultura perpétua; declare que não assiste à ré o direito invocado na dita escritura, ordene o cancelamento de quaisquer registos, ou simples averbamentos operados com base na escritura impugnada.” […] “Assim os poderes de fruição, utilização e disposição conferidos aos concessionários de sepulturas perpétuas (em campas ou jazigos) nos cemitérios paroquiais e que têm na sua génese um contrato exclusivamente administrativo (concessão de uso privativo de domínio público) titulada por alvará a emitir pelo Presidente da Junta de Freguesia e após deliberação prévia deste órgão e o pagamento da correspondente taxa, integra a categoria de um direito real administrativo, insuscetível de o fazer entrar no domínio privado e como tal constituir objeto de posse ou de um direito propriedade, por funcionamento das regras de usucapião.

O seu conteúdo e o seu regime inserem-se, pois, e em exclusivo, na esfera própria do direito público já que cemitério e sepultura em qualquer das modalidades que esta possa revestir, constituem sempre uma unidade de objeto ou de fim, formando um conjunto harmónico, cujos elementos não podem existir dissociados ou separados.

A concessão pelas autarquias locais de terrenos nos cemitérios sob sua administração para jazigos e sepulturas perpétuas traduz-se em concessão do direito ao uso privativo de um bem sob domínio público, consubstanciando um contrato administrativo, sendo competente para conhecer de ação que verse esse contrato administrativo o Tribunal Administrativo de Círculo.

Assim sendo, os pedidos formulados pela autora na petição inicial não envolve a apreciação de questões de direito privado, designadamente no domínio da posse e propriedade, mas sim a apreciação de questões de direito público, relacionadas com um contrato administrativo e saber se ao mesmo é, ou não usucapivel.” A autora não se conformou e interpôs recurso para esta Relação, concluindo assim as suas alegações: “1- O despacho saneador recorrido, proferido em 17 de Junho de 2015, que declara o Tribunal Judicial de Viana do Castelo – enquanto tribunal comum - incompetente em razão da matéria, aponta como competente o Tribunal Administrativo e absolve a Ré da instância, padece de vários erros e ilegalidades, 2- Pois nem o pedido formulado pela Recorrente, nem a causa de pedir invocada, constituem terreno do direito administrativo. Vejamos, 3- A Recorrente intentou a presente acção pedindo: a) que se declare impugnado “o facto justificado na escritura de 28 de Outubro de 2014”, na qual a recorrida invoca a aquisição e transmissão por usucapião do direito limitado de gozo da sepultura perpétua número seiscentos e dezasseis; b) que se “declare ineficaz e de nenhum efeito a dita escritura de justificação, de modo a evitar que a Ré, através daquele instrumento, averbe quaisquer direitos sobre a indicada Sepultura Perpétua”; c) que se “declare que não assiste à Ré [ora recorrida] o direito invocado na dita escritura; e, por...

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