Acórdão nº 73/14.9T8BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 07 de Abril de 2016

Magistrado ResponsávelMIGUEL BALDAIA MORAIS
Data da Resolução07 de Abril de 2016
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I- RELATÓRIO O Fundo de Garantia Automóvel, integrado no Instituto de Seguros de Portugal, com sede na Avenida da República, n.º 59, em Lisboa, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra “B. Companhia de Seguros, S.A.”, com sede …, e C., residente…, pedindo que estes sejam condenados, a primeira a título principal e o segundo a título subsidiário, a reembolsarem-no, por via da sub-rogação legal nos direitos dos lesados, dos montantes pagos em consequência de um acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do último, que totalizam €46.863,67, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, importando os vencidos na quantia de €3.738,82.

Regularmente citados, os RR contestaram, aceitando o C. a descrição do sinistro apresentada pelo A. e impugnando-a a B.. Esta exceciona ainda a invalidade do contrato de seguro celebrado relativamente ao veículo alegadamente causador do sinistro, que considera oponível aos lesados e ao Fundo de Garantia Automóvel, este por via da sub-rogação nos direitos daqueles, desiderato que o C., por sua vez, repudia.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, seguido de despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, contra o qual não foi apresentada qualquer reclamação.

Procedeu-se a audiência de julgamento com observância de todo o formalismo legal, no decurso da qual as partes acordaram em considerar como provados todos os factos controvertidos, com exceção de um deles, o vertido no artigo 10º da contestação do Réu Hélder, sobre o qual foi inquirida uma única testemunha.

Foi proferida sentença na qual se decidiu julgar parcialmente procedente a ação, em consequência do que se condenou a ré a pagar ao autor Fundo de Garantia Automóvel a quantia de €46.863,67 (quarenta e seis mil, oitocentos e sessenta e três euros e sessenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, agravada de 25%, desde 20 de Maio de 2014 até efetivo e integral pagamento.

* Não se conformando com o assim decidido veio a ré B. – Companhia de Seguros, S.A. interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: 1. Com todo o respeito que lhe merece a douta decisão recorrida, entende a Recorrente que houve uma deficiente interpretação do depoimento da testemunha que depôs na audiência de discussão e julgamento, relativamente à matéria do art. 10º da contestação do co-Réu.

  1. Com razão de ciência devidamente controlada, de forma determinada, isenta e credível, a aludida testemunha declarou que aceitou celebrar o contrato de seguro na sequência das declarações da tomadora, a qual acompanhada pelos seus pais, que já eram seus clientes, declarou que era proprietária do veículo e o seu condutor habitual e que possuía carta de condução da qual indicou o respectivo número, tendo apresentado o documento do stand respeitante à venda do veículo e ficado de apresentar posteriormente a carta de condução.

  2. Após isso e antes de assinar a proposta de seguro declarou “ter sido informada pelo Segurador do dever de lhe comunicar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco, bem como das consequências do incumprimento de tal dever”.

  3. Esta prova conjugada com os factos considerados provados, por acordo das partes, constantes dos arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º e 32º da contestação da Recorrente – que não estão integralmente reproduzidos no probatório da douta sentença recorrida -, permite concluir sem margem para qualquer dúvida de que a tomadora prestou dolosamente falsas declarações em relação à propriedade do veículo, ao condutor habitual e à própria carta de condução, para a qual indicou um número quando na realidade nem sequer possuía habilitação legal para conduzir.

  4. Em face dos factos provados a única conclusão possível é a de que a mediadora agiu de boa-fé e de que foi enganada por quem pensava ser de confiança.

  5. Ora, face às exigências e tutela do princípio da confiança e da aparência, a cujas linhas gerais se aludem na pág. 17 deste recurso, esta boa-fé e confiança têm que ser valoradas, e não menosprezadas e até censuradas como estranhamente o foram pelo douto Tribunal a quo.

  6. Da previsão dos actuais arts. 24º e 25º da LCS decorre que a seguradora poderá ser induzida a celebrar negócios menos correctos, para o que a lei determina a seu favor a anulabilidade dos mesmos.

  7. Contrariamente ao que sucedia com o revogado art. 429º do Cód. Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre do art. 25º da LCS.

  8. Ora, como decorre dos factos provados, nunca é demais recordar que a D. não só mentiu acerca da propriedade do veículo, identidade do condutor habitual e escondeu da Ré a inexistência de carta de condução, como o fez deliberadamente e com perfeita consciência do que estava a declarar e das suas consequências.

  9. Face ao novo regime jurídico do contrato de seguro, o que a lei exige, desde logo, é que “o tomador do seguro declare com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” (art. 24º, nº1). Caso tal seja dolosamente incumprido – como foi o caso – então o contrato de seguro é anulável (art. 25º nº1).

  10. O art. 429º do C. Comercial, por sua vez, dispunha o seguinte: “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecida pelo segurado ou por quem fez o seguro e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.

  11. Hoje o que se exige é diferente do que se exigia antes de 1 de Janeiro de 2009.

  12. A identidade do proprietário do veículo, a identidade do condutor habitual e o número da carta condução são obviamente informações que se incluem no nº1 do art. 24º, ou seja, informações que o tomador do seguro deve comunicar à seguradora com exactidão. Nem é necessário analisar se aquelas informações são significativas ou não para a apreciação do risco tal é a evidência e clareza da resposta! 14. No caso concreto a conduta da tomadora de seguro não podia ter sido mais grave: declarou que tinha carta de condução quando na realidade nem sequer possuía habilitação legal para conduzir, o que não a impediu de indicar o número da mesma.

  13. De acordo com as regras da experiência e de acordo com os princípios básicos da psicologia, é óbvio que a tomadora sabia que não podia celebrar qualquer contrato de seguro automóvel, como tomadora, porque não possuía sequer carta de condução.

  14. Ao enganar astuciosamente a seguradora o contrato é anulável.

  15. É este o raciocínio seguido pelos arts. 24º e 25º da nova Lei-Quadro do Contrato de Seguro.

  16. Não se deve onerar quem foi enganado.

  17. “Mas é também uma exigência ética que leva o Direito a defender a boa-fé contra a má-fé, a proteger a honestidade e a seriedade de processos e antagonizar a chicana, os aproveitamentos abusivos contrários à confiança e às coordenadas axiológicas fundantes da Ordem Jurídica”.

  18. Mesmo que fosse de aplicar ao caso o art. 429º do Cód. Comercial - que não é, mas assim o parece fazer o douto Tribunal a quo -, a posição a sufragar sempre deveria ser diferente da consagrada na douta sentença.

  19. As declarações prestadas pela tomadora do seguro mais do que inexactas e reticentes, são acima de tudo falsas. A tomadora conscientemente mentiu à mediadora aquando do preenchimento da proposta de seguro, sabendo de antemão que não podia celebrar qualquer contrato de seguro automóvel desde logo porque não tinha carta de condução.

  20. Mais do que uma omissão ou inexactidão, há intenção de enganar, há dolo, há aliás a prática do tipo legal de crime de fraude.

  21. Mas a tomadora do seguro também não tinha qualquer interesse na coisa segura, razão pela qual o contrato é nulo, nos termos do art. 43º da LCS.

  22. O interesse no seguro é sempre de natureza patrimonial, não relevando o interesse moral ou afectivo.

  23. A D. celebrou o contrato de seguro sub judice em seu nome sem ter habilitação legal para conduzir, sem ser a proprietária do veículo e a sua condutora habitual.

  24. Sendo o contrato de seguro celebrado por quem não tem interesse não é transferido para a seguradora qualquer risco, uma vez que nenhuma responsabilidade pode ser imputada à tomadora decorrente da circulação do veículo seguro. Neste caso, o contrato não tem objecto, sendo, portanto, nulo.

  25. Na linha, aliás, do princípio de Ordem Geral consagrado no art. 280º do Cód. Civil, segundo o qual “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível…”.

  26. Por isso é que a norma do art. 43º da LCS é qualificada como norma imperativa pelo art. 12º da mesma Lei-Quadro.

  27. A douta decisão recorrida acolheu errada interpretação e aplicação, entre outros dos arts. 24º, 25º e 43º da LCS, bem como dos arts. 405º e 280º do Cód. Civil e do art. 6º do DL nº 72/2008.

  28. Bem assim como consubstancia contradição de julgados relativamente ao processo nº 372/11.1TBACB.C1, Acórdão TRC de 03.12.2013.

* O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, requerendo outrossim a ampliação do objeto do recurso, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 636º do Cód. Processo Civil, de molde a que, em caso de procedência do recurso da ré, seja apreciada a questão da inoponibilidade ao Fundo de Garantia Automóvel da invalidade do contrato de seguro.

A ré apelante pronunciou-se no sentido de ser negado provimento à requerida ampliação, confirmando-se nesta matéria a sentença recorrida.

* Após os vistos legais cumpre decidir.

*** II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da...

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