Acórdão nº 616/18 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Novembro de 2018

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução21 de Novembro de 2018
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 616/2018

Processo n.º 251/2018

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. Refere-se o presente recurso, interposto pelo Ministério Público nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, a uma decisão de recusa proferida pelo Tribunal da Relação de Évora (cfr. item 1.2., infra) no quadro processual que seguidamente descreveremos.

1.1. No juízo local cível de Setúbal, no âmbito do processo n.º 6426/12.0TBSTB, foi declarada a insolvência de A. e mulher B.. Na sequência de tal declaração, foi apreendido para a massa o direito a um quinhão hereditário do qual fazia parte determinado imóvel, onerado com uma hipoteca registada a favor de C., S.A..

1.1.1. Esta entidade bancária – a ora recorrida – reclamou, oportunamente, na fase concursal subsequente à declaração de insolvência, um crédito no valor de €40.000,80, crédito este que lhe foi reconhecido nos autos como garantido pela referida hipoteca, por sentença transitada em julgado.

No apenso de liquidação, a senhora administradora da insolvência notificou o credor C., S.A. para se pronunciar sobre a modalidade e o valor da venda do imóvel hipotecado. Pronunciou-se o credor, em 23/10/2013, no sentido de um valor mínimo de €11.298,14. Em 21/11/2013, rejeitou uma oferta de compra pelo valor de €7.000,00, reiterando a posição já assumida. Frustradas outras diligências tendentes à venda, em julho de 2014, o credor aceitou que esta se anunciasse pelo valor de €6.668,00. Em 07/12/2016, a senhora administradora da insolvência juntou aos autos título de transmissão do imóvel pelo preço de €1.000,00.

1.1.2. O credor C., S.A. pediu, então, ao tribunal que declarasse a nulidade da venda, invocando não ter sido informado da redução do preço e ser este manifestamente diminuto. Tal pretensão foi indeferida pela senhora juíza titular do processo, por despacho proferido no apenso F (liquidação), com fundamento no disposto nos artigos 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE – que estabelecem, respetivamente: “[a] violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”; “[s]e, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”.

1.2. Inconformado com esta decisão, o mesmo credor dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 08/02/2018 – que corresponde ao objeto do presente recurso –, decidiu: “1.º) recusar a aplicação do conjunto normativo que se extrai dos artigos 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE, impossibilitando ao credor com garantia real sobre o bem a alienar a faculdade de arguir perante o juiz do processo a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido; 2.º) declarar nula a venda efetuada pela administradora da insolvência, pelo valor de €1.000,00 e cujo título de transmissão foi junto aos autos em 07/12/2016”. Da respetiva fundamentação consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

Da ineficácia ou nulidade da venda efetuada por administrador de insolvência com preterição de formalidades legais, e do princípio da tutela jurisdicional efetiva

Reconhece-se que a linha argumentativa prosseguida no despacho recorrido tem largo apoio na jurisprudência, quer nos arestos ali citados – Acórdãos da Relação de Guimarães de 31/03/2016 e desta Relação de Évora de 08/09/2016 – quer nos Acórdãos da Relação do Porto de 09/06/2015 e de 25/10/2016, e da Relação de Coimbra de 16/01/2018, todos publicados na base de dados do IGFEJ.

A argumentação desenvolvida nesta jurisprudência reside na desjudicialização do processo de insolvência, com redução da intervenção do juiz, em especial no domínio da administração e liquidação da massa, e que se traduz ‘por um lado, em retirar ao juiz qualquer poder de decisão ou, sequer, de intervenção a propósito, e, a nível ainda mais significativo, no desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores […] como os atos do administrador da insolvência. Em paralelo, e, decerto, com o objetivo de dinamização e eficiência do processo – instrumentos determinantes da melhor satisfação possível dos interesses dos credores, que constitui a finalidade visada pelo instituto da insolvência – reforçou-se a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização dos atos de administração e, sobretudo de liquidação da massa insolvente, por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores’.

Deste modo, a violação dos deveres impostos ao administrador da insolvência seria apenas fundamento de responsabilidade civil, ocorrendo os demais pressupostos do art. 59.º do CIRE.

Seguindo de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.04.2017, igualmente entendemos que o conjunto normativo contido nos arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE, impossibilitando ao credor com garantia real sobre o bem a alienar a faculdade de arguir perante o juiz do processo a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, viola o disposto no art. 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido.

Com efeito, a tutela jurisdicional não pode ser considerada existente quando a lei apenas assegura de forma indireta a proteção de direitos e impossibilita à parte prejudicada pela atuação de outro interveniente processual a faculdade de arguir perante o juiz da causa a existência de vícios processuais, o que corresponde a uma forma de indefesa.

Acresce que o art. 59.º do CIRE apenas confere ao lesado a possibilidade de ação indemnizatória contra o administrador da insolvência, impedindo-o de atacar a própria eficácia do ato praticado em violação dos seus direitos, que assim permanece incólume.

Deste modo, afastado aquele impedimento legal, a circunstância da venda ter sido efetuada por preço inferior ao valor base fixado, sem previamente ser informado o credor com garantia real, em violação do art. 164.º, n.º 2, do CIRE, constitui irregularidade processual com influência na decisão da causa, o que determina a nulidade do ato – arts. 17.º do CIRE e 195.º, n.º 1, e 839.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil.

[…]”.

1.3. Como indicámos supra no item 1., desta decisão interpôs recurso o Ministério Público, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC – impugnação que deu origem aos presentes autos –, oportunamente admitido no tribunal a quo.

1.3.1. No Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, pelo relator, determinando a notificação das partes para alegações. Ofereceu-as apenas o recorrente (Ministério Público), que rematou com as seguintes conclusões:

“[…]

33. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 40 a 44, proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 6426/12.0TBSTB-F.E1, que se pronunciou, em apelação, sobre a douta decisão prolatada pelo Juízo Local Cível de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, com fundamento no ‘(…) disposto nos arts. 70.º, n.º 1, al. a), 71.º, 72.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, 74.º, 75.º, 75.º-A, n.º 1, 76.º, 78.º e 79.º da Lei n.º 28/82, de 15/11’.

34. Este recurso é interposto por ter o Tribunal da Relação de Évora ‘[r]ecusa[do] a aplicação do conjunto normativo que se extrai dos arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE, impossibilitando ao credor com garantia real sobre o bem a alienar a faculdade de arguir perante o juiz do processo a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada (…)’.

35. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação foi invocada encontram-se consubstanciados no ‘(…) art. 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido’.

36. Invertendo a lógica da adequada abordagem da presente questão jurídico-constitucional, começaremos, mesmo antes de identificarmos as premissas do silogismo judiciário que lhe é aplicável, por enunciar a conclusão que se nos afigura inevitável, quer em razão da concordância e da adesão ao conteúdo do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 4 de abril de 2017 – acolhido na argumentação expendida pelo Tribunal da Relação de Évora na douta decisão impugnada –, quer, igualmente, porque a força da evidência sustentada na intuição jurídica parece impor inelutavelmente, no caso vertente, essa inferência.

37. Essa conclusão é coincidente com o teor da douta decisão impugnada, no sentido de julgar materialmente violadora do direito à tutela jurisdicional efetiva a interpretação normativa extraível dos artigos 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE, no sentido de impossibilitar ao credor com garantia real sobre o bem a alienar a faculdade de arguir perante o juiz do processo a nulidade da alienação efetuada pelo...

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