Acórdão nº 707/17 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Novembro de 2017

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução08 de Novembro de 2017
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 707/2017

Processo n.º 749/2015

Plenário

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Um grupo de deputados à Assembleia da República veio requerer, sob invocação do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea f), da Constituição, bem como nos artigos 51.º e 62.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, alterada por último pela Lei Orgânica n.º 11/2015, de 28/08, doravante LTC), a declaração de inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 4.º, 6.º, 7.º, 8.º, 11.º, 12.º, 13.º, 15.º, 16.º, 18.º, 30.º e 31.º, contantes de cada um dos Decretos-Lei n.ºs 92/2015, 93/2015 e 94/2015, todos de 29 de maio, dos respetivos Anexos, e ainda da norma contida no artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 92/2013, de 11 de julho.

2. Os requerentes suportam a pretensão nos seguintes fundamentos:

«[...]

IIO Decreto-Lei nº 92/2015.

19. Em 2004, através do Decreto-Lei n° 172/2004, de 17 de junho foi criado o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Baixo Mondego- Bairrada.

20. A sociedade Águas do Mondego – Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Baixo Mondego-Bairrada, S.A. (Águas do Mondego) foi criada pelo referido Decreto-Lei 172/2004, tendo aprovado os respetivos estatutos, com a participação da empresa Águas de Portugal, e dos municípios de Ansião, Arganil, Coimbra, Condeixa-à-Nova, Góis, Leiria, Lousã, Mealhada, Mira, Miranda do Corvo, Penacova, Penela, Vila Nova de Poiares, municípios os quais deliberaram voluntariamente participar nessa sociedade.

21. De acordo com o disposto no artigo 3°, n° 1, dos Estatutos da sociedade o objeto da referida sociedade é a concessão do citado sistema multimunicipal do Baixo Mondego-Bairrada.

22. Em 30 de dezembro de 2004, foi celebrado o contrato de concessão do sistema multimunicipal do Douro e Paiva nos termos das bases das concessões aprovadas pelo Decreto-Lei n° 319/94.

23. A sociedade Águas do Mondego é uma sociedade comercial anónima, sujeita ao Direito Privado na sua atuação e que se rege pelas regras do Código das Sociedades Comerciais – cfr. o artigo 3° do Decreto-Lei n° 172/2004.

24. Nessa sociedade os municípios seus acionistas detêm as participações referidas no artigo 5° dos Estatutos da Sociedade aprovados pelo referido Decreto-Lei n° 172/2004.

25. O Decreto-Lei n° 92/2015, de 29 de maio, i) extingue a sociedade Águas do Mondego – cfr. artigo 4°, n° 2, nº 3 e nº 4 -, ii) cria a sociedade Águas do Centro Litoral S.A. – cfr., v.g. artigo 4º, n° 1 -, iii) extingue o sistema multimunicipal do Baixo Mondego-Bairrada – cfr. artigos 2°, n° 2 e 4º, nº 4 -, iv) cria o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Centro Litora1 de Portugal — cfr. artigo 1°, n° 1 -, v) extingue o contrato de concessão do sistema multimunicipal do Baixo Mondego-Bairrada – cfr. artigo 2°, n° 7 -, vi) atribui à sociedade Águas do Centro Litoral a concessão da exploração e da gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Centro Litoral de Portugal – cfr. artigos 1°, n° 2, 9° e 10º – e vii) e convoca a Assembleia Geral da Sociedade Águas do Centro Litoral – cfr. artigo 33.

A) Inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 4° do Decreto-Lei nº 92/2015: a decisão de proceder à extinção da sociedade Águas do Mondego, S.A.

26. A decisão de extinguir a sociedade referida foi tomada unilateralmente por ato formalmente legislativo do Governo, contra e, ou independentemente da vontade dos seus acionistas.

27. A intervenção do Estado sobre a empresa concessionária Águas do Mondego por via do Decreto-Lei nº 92/2015, procedendo à sua extinção e à transferência do seu património para uma nova sociedade criada, suscita problemas de validade jurídica procedimental e substantiva, atendendo à sua natureza formalmente legislativa e ao seu conteúdo material administrativo.

28. A criação da sociedade Águas do Mondego obteve para o efeito a prévia anuência dos vários municípios participantes na sociedade.

29. É, pois, possível dizer-se que o ato constitutivo da sociedade Águas do Mondego é um ato constitutivo de direitos: dos direitos dessa mesma sociedade e dos direitos dos seus acionistas.

30. As sociedades gestoras dos sistemas multimunicipais – como acontece com a sociedade Águas do Mondego – são sociedades plurianuais de capitais públicos.

31. Tal significa que nos deparamos com sociedades que assentam internamente num relacionamento plurisubjectivo ao nível dos titulares do seu capital social, seguindo dois aspetos estruturantes.

32. Por um lado, o Estado, apesar de ser sócio maioritário, não pode deixar de respeitar as posições subjetivas tituladas pelos municípios que são, igualmente, titulares de participações sociais.

33. Por outro lado, os sócios minoritários de uma sociedade comercial possuem direitos que não podem ser desprezados ou marginalizados pelo sócio minoritário, havendo aqui uma dimensão de indisponibilidade das situações jurídicas dos sócios minoritários.

34. Assim, apesar da natureza pública da totalidade do capital social da sociedade Águas do Mondego, o certo é que existem diferentes titularidades e, por conseguinte, diferentes interesses públicos a acautelar e a harmonizar: os municípios prosseguem interesses públicos diferentes dos interesses públicos protagonizados pelo Estado.

35. Além disso, a própria sociedade concessionária, enquanto entidade coletiva distinta dos seus sócios, possui uma personalidade jurídica própria e prossegue fins próprios; os sócios são titulares do capital social da sociedade, que não podem confundir-se com os da sociedade comercial em causa.

36. A intervenção do Governo foi tomada em violação das regras constantes do Código das Sociedades Comerciais sobre a extinção das sociedades anónimas.

37. Com efeito, de acordo com o Código das Sociedades Comerciais a extinção de uma sociedade obedece ao procedimento previsto nos artigos 141°, 464°, nº 1, 383°, nº 2 e 386° relativos à respetiva dissolução e 146° e ss. respeitantes à sua liquidação.

38. Estas regras existem, designadamente, para proteger os sócios minoritários: de facto, tendo os sócios aportado para a sociedade o capital, é normal que a respetiva extinção, que poderá passar pela perda desse valor, tenha que ser deliberada por uma maioria significativa dos sócios.

39. No caso em apreço verifica-se que o procedimento previsto no Código das Sociedades Comerciais foi, pura e simplesmente, pulverizado pelo Governo, que decidiu extinguir a sociedade por Decreto.

40. A razão de ser do procedimento seguido pelo Estado é simples: a sociedade Águas de Portugal, integralmente detida pelo Estado, e sócia maioritária da Sociedade Águas do Mondego, não estava, nem está em condições de deliberar, só por si a referida extinção.

41. De forma que o Governo, para alcançar um fim para o qual não detinha meios de acordo com a lei aplicável, decidiu passar por cima dessa lei e por ato formalmente legislativo, pôr termo à sociedade.

42. Essa atuação tem a consequência da violação das citadas normas do Códigos das Sociedades Comerciais que visam proteger as minorias, bem como a violação dos direitos societários dos seus acionistas de votarem a favor ou contra essa deliberação.

43. Verifica-se, assim, que o Governo utilizou o Decreto-Lei nº 92/2015 com o propósito de contornar a dificuldade de, por via de deliberação da assembleia geral da sociedade, obter o resultado desejado pelo Estado que, sendo titular da maioria do capital social, não possuía, porém, a maioria qualificada que lhe permitisse, à luz da lei comercial destinada a proteger os sócios minoritários, alcançar o propósito de extinguir a sociedade concessionária: há aqui uma situação de desvio de poder quanto ao procedimento usado, reconduzível a uma inconstitucionalidade do ato legislativo formal.

44. O Governo usou o Decreto-Lei nº 92/2015 como meio destinado a desconsiderar ou derrogar uma regra legal de proteção de direitos dos sócios minoritários: a exigência de respeito por uma maioria de dois terços do capital para certas deliberações sociais funciona como limite ou travão decisório à vontade do sócio maioritário.

45. O Governo substituiu-se, assim, à assembleia geral da sociedade comercial Águas do Mondego, decidindo o que a esta última competia, determinando a extinção da sociedade, a extinção do contrato de concessão e a transferência global do seu património para uma nova sociedade comercial, numa ação violadora de direitos fundamentais desta sociedade e dos seus acionistas, os quais são oponíveis ao Estado.

46. A possibilidade reconhecida pela ordem jurídica de serem criadas sociedades pluripessoais de capitais públicos, por via de decreto-lei, não pode ser usada para proceder à sua extinção em violação das regras estatutárias e das normas legais disciplinadoras da maioria qualificada para a dissolução de tais sociedades — se assim for feito, num gesto de fraude à lei e aos estatutos, atendendo à força de lei de que gozam os decretos-leis, há uma utilização indevida deste ato legislativo.

47. A conduta do Governo revela-se violadora do direito fundamental à autonomia de gestão da própria sociedade concessionária, integrantes da liberdade de iniciativa económica privada, assim como do seu direito de propriedade, e ainda do seu direito de audiência prévia da sociedade concessionária, argumentos que geram a invalidade da decisão de proceder à da Sociedade Águas do Mondego ex vi os artigos 2°, 61°, 62°, nº 2 e 267°, nº 5 da Constituição.

48. A presente conduta legislativa-administrativa do Estado...

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