Acórdão nº 225/18 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Abril de 2018

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução24 de Abril de 2018
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 225/2018

Processo n.º 95/17

Plenário

Relator: Conselheiro Pedro Machete

.

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Um grupo de trinta Deputados à Assembleia da República veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos seguintes preceitos da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho (Lei da Procriação Medicamente Assistida – “LPMA”), na redação dada pelas Leis n.ºs 17/2016, de 20 de junho, e 25/2016, de 22 de agosto:

a) Artigo 8.º, sob a epígrafe «Gestação de substituição», n.ºs 1 a 12, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 67.º, n.º 2, alínea e), da Constituição), do dever do Estado de proteção da infância (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição), do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição); e, consequentemente, «das normas ou de parte das normas» da LPMA que se refiram à gestação de substituição (artigos 2.º, n.º 2, 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 14.º, n.ºs 5 e 6, 15.º, n.ºs 1 e 5, 16.º, n.º 1, 30.º, alínea p), 34.º, 39.º e 44.º, n.º 1, alínea b) );

b) Artigo 15.º, sob a epígrafe «Confidencialidade», n.ºs 1 e 4, em conjugação com os artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, e 19.º, n.º 1, por violação dos direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e à identidade genética (artigo 26.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição), do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 67.º, n.º 2, alínea e), da Constituição), do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição);

c) Artigo 20.º, sob a epígrafe «Determinação da parentalidade», n.º 3, por violação dos direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e à identidade genética (artigo 26.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição), do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 67.º, n.º 2, alínea e), da Constituição), do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).

Na sequência de uma análise das principais modificações introduzidas na LPMA, respetivamente, pela Lei n.º 17/2016 (em matéria de procriação medicamente assistida) e pela Lei n.º 25/2016 (em matéria de gestação de substituição), os requerentes começam por alinhar um conjunto de reflexões sobre o sentido e alcance das mesmas:

«A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 11-11-1997, do Comité Internacional de Bioética da UNESCO, dispõe no seu artigo 1.º que o “genoma humano tem subjacente a unidade fundamental de todos os membros da família humana, bem como o reconhecimento da sua inerente dignidade e diversidade. Em sentido simbólico constitui património da Humanidade”.

A única referência expressa da Constituição da República Portuguesa à procriação medicamente assistida consta da alínea e) do n.º 2 do artigo 67.º ([i]mcumbe ao Estado (...) regulamentar a procriação assistida em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana»), preceito introduzido no texto constitucional pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, que impõe ao Estado a obrigação de regulamentação da procriação medicamente assistida, vinculada a uma referência normativa que o legislador ordinário deverá observar, regulando a matéria na estrita obediência ao valor da salvaguarda da dignidade da pessoa humana:

“Ao remeter para a dignidade da pessoa humana, o artigo 67.º, n.º 2, alínea e), da Constituição da República pretende, por conseguinte, primariamente, salvaguardar os direitos das pessoas que mais diretamente poderão estar em causa por efeito da aplicação de técnicas de procriação assistida, e, em especial, o direito à integridade física e moral (artigo 25.º), o direito à identidade pessoal, à identidade genética, ao desenvolvimento da personalidade e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º), o direito a constituir família (artigo 36.º), e, ainda, o direito à saúde (artigo 64.º ). Sem ignorar, nesse plano, que no universo subjetivo de proteção da norma estão não apenas os beneficiários e as pessoas envolvidas como participantes no processo, mas também as pessoas nascidas na sequência da aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida.” [Acórdão n.º 101/2009]

Fazendo eco desta perspetiva da questão, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) alerta para o facto de que “... A decisão sobre a utilização de técnicas de PMA deve estar subordinada ao primado do ser humano, princípio fundamental que rejeita a sua instrumentalização, e consagra a dignidade do ser humano e consequente proteção dos seus direitos, em qualquer circunstância, face às aplicações da ciência e das tecnologias médicas (Convenção sobre os Direitos do Homem e Biomedicina). No âmbito da aplicação das técnicas da PMA deve, assim, valorizar-se a condição do ser que irá nascer que, pela natureza e vulnerabilidade é quem é mais carecido de proteção. Devem ainda ser tidos em consideração os direitos do/a filho/a à sua identidade pessoal, ao conhecimento das suas origens parentais, bem como a conhecer eventuais riscos para a sua saúde associados aos processos tecnológicos utilizados na sua geração” [Parecer n.º 87/CNECV/2016].

Ora, esta alteração legislativa trouxe, na verdade, uma «mudança de paradigma da utilização das técnicas da PMA» – palavras do CNECV –, pois deslocou o foco de toda a proteção exclusivamente para a mulher, desconsiderando aquele conjunto de direitos que constitui o mais importante valor a salvaguardar, e em relação aos quais o Estado tem um particular dever de proteção: os direitos da criança.

Se o direito a constituir família e a ter filhos é constitucionalmente protegido, também o é o direito a conhecer-se cabalmente a sua identidade – também a genética – e, entre um e outro, deverá ser o primeiro a ceder, e não o contrário, como sucede nesta lei.

Assistimos, pois, a uma substituição do princípio da subsidiariedade – perfeitamente atendível, delimitado e proporcional nas condições até aqui estipuladas – pelo princípio da complementaridade, o que se pode constatar, principalmente, nas seguintes alterações:

– O princípio da beneficência é substituído pelo princípio da igualdade perante a lei (apenas para alguns, naturalmente, já que todos poderão ter o direito a ter filhos mas nem todas as crianças terão o direito constitucionalmente consagrado a conhecer a sua identidade pessoal e genética);

– A PMA deixa de ser regulamentada como um método subsidiário e passa a ser um método alternativo;

– O acesso à PMA deixa de ser uma forma de tratamento, em contexto de infertilidade ou doença grave, para passar a ser considerado um direito reprodutivo de toda e qualquer mulher que o deseje, porque lhe apetece, independentemente do estado civil;

– Deixa de se privilegiar a correspondência entre a progenitura social e a progenitura biológica, consagrando-se uma solução jurídica que favorece, de forma desproporcional, a primeira.

E é precisamente isto, o centrar da PMA na mulher e num único progenitor, que deixa a descoberto a necessidade de maior atenção aos direitos da criança que vai nascer.

Ou seja, e dito de outra forma, subscrevemos as afirmações da Conselheira Rita Lobo Xavier, no já citado Parecer do CNECV: “[T]ambém não considero ser eticamente aceitável fazer prevalecer totalmente o interesse da mulher beneficiária das técnicas de PMA sobre os direitos do/a filho/a que virá a nascer, designadamente, no caso da possibilidade de inseminação post mortem” (…).

Já no que se refere à gestação de substituição no Parecer n.º 63/CNECV/2012, o CNECV deixou claras quais as condições que considerava deverem constar da lei que passasse a prever o recurso a esta técnica, que, por considerarmos relevantes, passamos a enunciar:

1. A gestante de substituição e o casal beneficiário estarem cabalmente informados e esclarecidos, entre outros elementos igualmente necessários, sobre o significado e consequências da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal (por exemplo, epigenética), constando tal esclarecimento detalhado no consentimento informado escrito, assinado atempadamente;

2. O consentimento poder ser revogado pela gestante de substituição em qualquer momento até ao início do parto. Neste caso, a criança deverá ser considerada para todos os efeitos sociais e jurídicos como filha de quem a deu à luz;

3. O contrato entre o casal beneficiário e a gestante de substituição dever incluir disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doença fetais e de eventual interrupção voluntária da gravidez;

4. A gestante de substituição e o casal beneficiário deverem estar informados que a futura criança tem o pleno direito a conhecer as condições em que foi gerada;

5. A gestante de substituição não dever ser simultaneamente dadora de ovócitos na gestação em causa;

6. A gestante de substituição ter de ser saudável;

7. As motivações altruístas da gestante de substituição deverem ser previamente avaliadas por equipa de saúde multidisciplinar, não envolvida no processo de PMA;

8. Quaisquer intercorrências de saúde ocorridas na gestação (a nível fetal ou materno) serem decididas exclusivamente pela gestante de substituição com o apoio de equipa multidisciplinar de saúde;

9. Caber ao casal beneficiário, em conjunto com a gestante de substituição, decidir a forma de amamentação (devendo, em caso de conflito, prevalecer a opção do casal beneficiário);

10. Ser legalmente inaceitável a existência de uma relação...

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