Acórdão nº 835/17 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Dezembro de 2017

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução13 de Dezembro de 2017
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 835/2017

Processo n.º 651/2017

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorridos o MINISTÉRIO PÚBLICO e B., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (seguidamente, “LTC”), do acórdão proferido por aquele Tribunal, datado de 31 de maio de 2017, que julgou improcedente o recurso interposto da sentença proferida em primeira instância, que condenou a ora recorrente, pela prática de um crime de «aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada», p. e p. pelos artigos 199.°, n.° 1, e 197.°, n.° 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (doravante, «CDADC»), na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa à taxa diária de 7 €, e na pena de 170 dias de multa à mesma taxa diária.

2. Pela Decisão Sumária n.º 554/2017, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto pelos fundamentos seguintes:

«II – Fundamentação

5. Através do recurso interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 31 de maio de 2017, pretende a recorrente ver apreciada a constitucionalidade: i) dos artigos 48.º e 69.º, n.º 2, alínea b), ambos do CPP, na interpretação segundo a qual «não está inquinada de invalidade a ação penal exercida apenas contra um dos comparticipantes na prática de eventual crime público, quando outros comparticipantes desse alegado crime foram igualmente identificados durante o inquérito»; ii) do artigo 191.º, n.º 1, do CDADC, segundo a qual «consubstancia um ato de distribuição ao público toda a distribuição ilícita de cópias da obra usurpada»; e iii) do artigo 428.º do CPP, na interpretação, implicitamente adotada pelo Tribunal recorrido, de acordo com a qual a Relação «apreciando de direito, pode, para efeitos da definição dos elementos objetivos do tipo incriminador, recorrer a todos os segmentos da factualidade dada como provada, mesmo que tais segmentos não façam parte da factualidade constante da acusação ou pronúncia» — embora, quanto a esta, apenas no caso de se entender que a respetiva invocação não careceria de ser precedida da arguição, perante o Tribunal recorrido, da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

6. O recurso nos presentes autos interposto funda-se na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, preceito segundo o qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional “das decisões dos tribunais (…) que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 70.º da LTC, os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do respetivo n.º 1 apenas cabem de “decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência”.

Constitui entendimento reiteradamente expresso na jurisprudência deste Tribunal que a exigência de exaustão dos recursos ordinários associa a sua razão de ser à natureza hierarquizada do sistema judiciário e à possibilidade de reação facultada no interior de cada ordem jurisdicional, pretendendo-se desse modo assegurar que o Tribunal Constitucional seja somente chamado a reapreciar, no âmbito da fiscalização concreta, as questões de constitucionalidade apreciadas em decisões judiciais que constituam o último pronunciamento dentro da ordem judiciária a que pertence o tribunal que proferiu a decisão recorrida (cf. Acórdão n.º 489/15).

Para saber se nos encontramos perante uma decisão definitiva – e, como tal, recorrível dentro do prazo fixado no n.º 1 do artigo 75.º da LTC −, dever-se-á atender ao conteúdo dessa “pronúncia judicial e ao pertinente regime processual do recurso”, procurando determinar-se se, de acordo com este regime, aquela pronúncia constitui ou não a última palavra dos Tribunais comuns quanto à “dimensão material do objeto do processo abrangida ou potencialmente afetada pelo recurso de constitucionalidade” (cf. Acórdão n.º 321/2013, itálico aditado).

As considerações que acabam de expender-se prendem-se diretamente com a primeira das questões de constitucionalidade enunciadas no requerimento de interposição do recurso — aquela que tem por objeto os artigos 48.º e 69.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código de Processo Penal (doravante, «CPP»), na interpretação segundo a qual «não está inquinada de invalidade a ação penal exercida apenas contra um dos comparticipantes na prática de eventual crime público, quando outros comparticipantes desse alegado crime foram igualmente identificados durante o inquérito».

Conforme relatado supra, na resposta ao recurso interposto pelo assistente, ora recorrido, do despacho de não pronúncia, proferido pela 1.ª Secção de Instrução Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa em 28 de abril de 2015, a ora recorrente, então recorrida, começou por confrontar o Tribunal da Relação de Lisboa com a questão — que já então qualificou como «prévia» e «bastante perturbadora» — de saber quais as consequências que, do ponto de vista da validade do procedimento criminal instaurado nos autos, deveriam associar-se à circunstância de a ação penal ter sido exercida apenas contra a própria, quando certo é que o email por cujo reencaminhamento se pretendia que fosse criminalmente responsabilizada lhe fora remetido por B. — que, de resto, expressamente o assumira nos autos —, a qual, por sua vez, o recebera de Sara Cardina, conforme por esta igualmente reconhecido aquando da sua inquirição na qualidade de testemunha do decurso do inquérito.

Assim suscitada pela ora recorrente, tal questão foi conhecida e decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 27 de outubro de 2015, tendo sido considerada aí insuscetível de afetar a subsistência do procedimento criminal instaurado nos presentes autos.

De acordo com o julgamento realizado no referido acórdão, estando em causa a imputação de «um crime de natureza pública» — «não dependente», por isso, «de queixa do ofendido» —, o Ministério Público «t[inha] legitimidade para iniciar e dar seguimento à investigação, assim como para acusar qualquer pessoa que v[iesse] a revelar-se autora do crime, logo que tom[asse] conhecimento, (…) por que via fo[sse], da sua prática». Todavia — considerou-se ali ainda —, tendo o inquérito corrido apenas contra a arguida, ora recorrente, e só a mesma tendo sido «ouvida nessa qualidade» até ao respetivo encerramento, a circunstância de poderem existir «os mesmos indícios relativamente a outras pessoas» não comprometia a validade «da “acusação” concretamente formulada pelo assistente», ora recorrido, através do requerimento de abertura de instrução.

O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 27 de outubro de 2015, pronunciou-se, conforme se viu, sobre a exceção oposta pela ora recorrente, então recorrida, à possibilidade de ser exercida a ação penal – no caso, através do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, ora recorrido —, somente contra quem fora constituído arguido no decurso do inquérito, sempre que, tratando-se de crime público, do mesmo resultassem indícios suficientes de que o comportamento imputado havia sido igualmente empreendido por outras pessoas.

No segmento em que concluiu pela improcedência da referida exceção, com reflexo na subsistência do procedimento criminal, o referido acórdão deixou assente, em termos de caso julgado formal, que a ação penal exercida contra a ora recorrente era insuscetível de ser afetada, na sua validade, pela circunstância de o inquérito conter elementos indiciadores de que a atuação criminalmente relevante fora levada a cabo também por outras pessoas, apesar de não constituídas arguidas no decurso do mesmo.

Revestindo autoridade de caso julgado formal, aquela pronúncia constituiu, assim, rigorosamente, a última palavra dos Tribunais comuns quanto à dimensão do processo abrangida pela primeira das questões enunciadas no recurso de constitucionalidade — justamente a que tem por objeto os artigos 48.º e 69.º, n.º 2, alínea b), ambos do CPP, na interpretação segundo a qual «não está inquinada de invalidade a ação penal exercida apenas contra um dos comparticipantes na prática de eventual crime público, quando outros comparticipantes desse alegado crime foram igualmente identificados durante o inquérito».

Assim, pretendendo controverter a constitucionalidade do critério normativo subjacente à decisão de considerar verificado o pressuposto relativo à validade do procedimento criminal questionado no âmbito da resposta ao recurso interposto do despacho de não pronúncia, parece, pelo menos à primeira vista, que a ora recorrente deveria ter recorrido para este Tribunal do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 27 de outubro de 2015, uma vez que, no segmento em que se pronunciou sobre aquela questão prévia, tal acórdão constituía já uma decisão definitiva nos termos e para os efeitos previstos no artigo 70.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, ambos da LTC.

7. A tal conclusão, duas objeções podem ser, todavia, colocadas.

A primeira diz respeito à natureza da própria decisão instrutória — no caso, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que determinou a pronúncia da ora recorrente pelos factos constantes do requerimento de abertura de instrução.

Sob o argumento de que a decisão instrutória tem uma natureza inerentemente provisória — no sentido de revisível ou revertível pelo juiz de julgamento —, dir-se-ia que, também no segmento em que...

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