Acórdão nº 20/19 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Janeiro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução09 de Janeiro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 20/2019

Processo n.º 776/16

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que manteve a decisão da 1.ª instância que condenou o arguido em pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pela interpretação conjugada dos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.°s 1 e 2, alínea i), do Código Penal (CP).

É a seguinte, para o que aqui releva, a fundamentação constante da decisão recorrida:

«(...)

A censurabilidade de que fala o preceito do n.º 1 do art. 132.º do Cód. Penal constrói-se sobre um grau agravado de reprovabilidade, em termos de culpa revelado por circunstâncias de tal modo graves "que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores", na teorização de Teresa Serra - Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Livraria Almedina, 1998 (2.ª reimpressão), pp. 63.

A especial censurabilidade reflete-se na "refração ao nível do agente de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; a especial perversidade refere-se à documentação no facto de qualidades da personalidade especialmente desvaliosas", (...)

Dito isto, vejamos se no caso concorrem as qualificativas indicadas na acusação pública (das als. h) e i) do n.º 2 do art. 132.º).

E, desde logo, não poderemos deixar de concluir em sentido afirmativo, ainda que, unicamente, em relação a uma delas.

(...)

Importa agora indagar se se verifica o preenchimento da circunstância da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal.

Relativamente ao emprego, pelo arguido, de meio insidioso, a que é feita menção nesta alínea, cabe agora referir que este, o meio insidioso, é o meio dissimulado na sua intenção maléfica. É o meio fraudulento ou sub-reptício por si mesmo, como por exemplo, as armadilhas, os venenos físicos (vidro moído, limadura metálica, germes patogénicos, etc.), a traição (ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso), a emboscada (dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar), a simulação (ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa).

São enquadráveis neste exemplo-padrão aqueles casos em que o agente age com falsas mostras de amizade, ou de tal modo que a vítima, iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa.

O fundamento da agravação radica no facto de se utilizarem meios que, dado o seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, tornam especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastam consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos - neste sentido, cfr. Fernanda Palma, Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, 1983, pp. 65; e Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 38 e 39.

De tudo resulta, assim, que quando a lei fala em meio insidioso não quer necessariamente abranger os instrumentos usuais de agressão, como por exemplo, o ferro, o pau, a faca, a pistola, mesmo que usados de surpresa - neste exato sentido, cfr. Ac. STJ, de, relatado por Castro Ribeiro, in CJSTJ, 1995, t. III, pp. 255 a 260; e, em sentido idêntico, Leal Henriques e Simas Santos, Ob. cit., pp.47.

O que se pretende abranger são aqueles casos em que se usam meios particularmente perigosos ou incomuns de agressão, bem assim como aqueles outros em que são utilizados meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, situações em que a defesa por parte da vítima se toma muito difícil ou mesmo impossível.

O meio insidioso, justamente por sê-lo, não poderá deixar de ser também especialmente perigoso, justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida.

No caso vertente, a atuação criminosa de que veio a resultar a tentativa de morte do ofendido B. reveste-se, sem margem para qualquer dúvida, daquele ocultismo em regra associado e preponderante na caracterização do típico caso de insídia, como por exemplo acontece no envenenamento.

A insídia não poderá ver-se desligada da resolução e subsequente atuação criminosa do agente, na medida em que, tratando-se de um procedimento oculto, justamente porque destinado a obter o resultado sem o conhecimento da vítima e sem que ela de nada se aperceba.

E só o meio usado com vista ao resultado querido pelo arguido deve ser valorado, ou não, como oculto, não já a intenção do agente que, em regra, o será sempre, na insídia ou fora dela.

No caso vertente, a atuação criminosa praticada pelo arguido A., acima descrita, encerrou o ocultismo, a insídia, a que se alude na al. i) do art. 132.º do Cód. Penal, sendo a este propósito de ponderar que o arguido se aproximou repentinamente e pelas costas do ofendido, e, encontrando-se de costas para este, colocou o seu braço esquerdo em torno do pescoço do ofendido, realizando uma "gravata", após o que desferiu duas pancadas com o martelo, totalmente em ferro, que trazia na sua mão direita, na cabeça do ofendido, dúvidas não se suscitando em como o arguido levou a cabo um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada e desprevenida, e, por isso, indefesa, numa situação em que lhe era de todo impossível esboçar uma qualquer defesa, por não suspeitar que ia ser atingida.

O arguido procurou, pois, uma forma encoberta ou traiçoeira de executar o facto, com vista a que a vítima não tivesse qualquer possibilidade de defesa, configurando-se, pelo exposto, tal atuação como aleivosa, traiçoeira e desleal, constituindo, consequentemente, o comportamento do arguido, dada como provado, a que é feita menção nos pontos 3. a 6. da Matéria de Facto Provada, um meio insidioso.

A factualidade provada preenche, sem dúvida, a circunstância qualificadora da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal.

Fica, pois, claramente demonstrada a atitude profundamente distanciada do arguido e o seu desrespeito radical pelos valores de uma sociedade assente na dignidade da pessoa humana e em que o primeiro direito fundamental é o da vida.

A sua atitude, sendo reveladora de uma maior culpa, é, por isso, passível de um mais intenso juízo de censurabilidade ético-jurídico.

Assim, em conclusão, da definição da imagem global do facto resulta patente que o arguido A. agiu com especial censurabilidade, pelo ataque aleivoso e traiçoeiro que empreendeu, e que vitimou o ofendido B.. Verifica-se, assim, que no facto se projetam refrações de personalidade desvaliosa, existindo ainda um especial "desvalor de atitude" do arguido; o crime de homicídio é, pois, qualificado, nos termos do art. 132.º, n.ºs 1 e 2, al. i) do Cód. Penal

2. No seu recurso de constitucionalidade, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

«1. A parte final da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do código penal viola a constituição.

2. Não respeita o princípio da legalidade e tipicidade consagrado no nº 1 do artigo 29º da lei fundamental.

3. A técnica dos exemplos-padrão pode ser tida como compatível com a exigência constitucional.

4. Mas a alusão a "qualquer outro meio insidioso" não se traduz num exemplo.

5. É antes cláusula geral, conceito indeterminado ou noção vaga de conteúdo elástico, com limites incertos.

6. Não consubstancia o estabelecimento de pressupostos fixados na lei, mas sim a consagração de uma conceção aberta, de contornos imprecisos.

7. Exige hermenêutica jurídica de integração para densificação que preencha e complemente o espaço normativo.

8. Não se basta com a mera subsunção da factualidade a uma noção precisa, rigorosamente definida, que tem de ser inerente aos tipos penais.

9. Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas ínsitas no nº 1 do artigo 132º e da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do código penal, revogando-se a sentença que condenou o arguido por aplicação das mesmas.»

3. O recurso foi admitido com o esclarecimento feito pelo recorrente a fls. 800 a 802, que têm, para o que aqui releva, o seguinte teor:

«No (…) recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa o arguido e recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas contidas no n.º 1 do art.º 132º do Código Penal e da alínea i) do n.º 2, do mesmo preceito legal, por violação do n.º 1 do art.º 29º da C.R.P. - Princípio da legalidade e seu corolário primeiro, princípio da tipicidade, postulando a exigência de normas penais certas - "nullum crimen nulla poena sine lege certa", exigências incompatíveis com a descrição do comportamento punitivo mediante cláusulas gerais, conceitos indeterminados, vagos, ou de tal forma imprecisos que postulem, por banda do Magistrado uma densificação conceitual tal, que não pode deixar de colidir com a reserva legislativa (garantia penal).

Ali se disse designadamente que: "O princípio da tipicidade não consente que uma sanção penal seja aplicada mediante recurso a conceitos vagos como especial censurabilidade ou perversidade resultante da utilização de meio insidioso".

De resto, e ainda que ultrapassada a vacuidade conceitual das expressões supra referidas, não pode aceitar-se o...

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