Acórdão nº 2790/16.0T8VFX.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 06 de Novembro de 2018

Magistrado ResponsávelPINTO DE ALMEIDA
Data da Resolução06 de Novembro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]: I.

AA intentou esta acção declarativa, com processo comum, de impugnação de paternidade presumida, contra BB.

Pediu que seja afastada a presunção de paternidade do réu e respectiva avoenga paterna relativamente à menor CC e ordenado o cancelamento do registo de paternidade que ora se impugna e respectiva avoenga paterna e, bem assim, a eliminação do apelido "DD", por não corresponder à verdade.

Como fundamento, alegou que se separou do réu em Março de 2015 e que, em Maio de 2015, recorreu a técnica de procriação medicamente assistida (PMA) em ..., da qual resultou o nascimento da sua filha, em 29 de Janeiro de 2016. Fê-lo sem consentimento do réu.

O Réu contestou, alegando que a acção não pode proceder uma vez que a inseminação artificial em causa foi por si consentida.

Foi nomeado curador à menor e procedeu-se à competente citação da ré CC, na pessoa do curador, não tendo sido apresentada contestação.

Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

A autora recorreu desta sentença, tendo o réu contra-alegado, pugnando pela manutenção do decidido e invocando abuso de direito por parte da A.

A Relação julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida, embora com diferente fundamentação (abuso do direito).

Ainda inconformada, a autora vem pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões: A) Nestes autos vem a A. AA impugnar a paternidade do R. BB, quanto à filha daquela, CC, nascida em … de … de 2016. E consequente cancelamento da paternidade e avoenga paterna no registo civil da menor.

B) Para tanto alega que apesar de à data da concepção da CC, estar casada com o R, estavam já separados de facto há vários meses e o R. é reconhecidamente estéril.

C) A CC foi concebida por recurso a banco de esperma em sede de PMA, em ..., sem o consentimento do marido da mãe, aqui R.

D) Ainda na maternidade, o R., usando da fragilidade da A., registou a menor como sua filha. Registo que é falso.

E) O então marido da A. não dava consentimento para a inseminação artificial.

F) (…) G) Menos de 3 meses após o nascimento da CC, A. e R. voltaram a separar-se e vieram a divorciar-se.

H) Foi nomeada curadora à menor, pela ora Apelante, e não impugnada pelo R. que, nada tendo a opor ao pedido na acção, antes o subscrevendo, não apresentou contestação.

I) Fixados os Temas da Prova na audiência de julgamento e apresentada a prova documental e testemunhal foi proferida sentença na 1ª Instância que declarou improcedente a acção por se entender que a A. não fez prova da falta de consentimento do R. para a inseminação artificial.

J) Interposto recurso, veio este a ser, em parte, procedente, tendo sido dado por provado que a A. informou o R. do recurso a PMA e que este não deu o consentimento a tal acto.

K) Porém, o acórdão recorrido declara improcedente o pedido por entender que a presente é um abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium ".

L) (…) M) Na audiência prévia o único tema da prova fixado foi "saber se a A. recorreu a inseminação artificial com recurso a banco de esperma sem consentimento do marido".

N) Em julgamento foi atendida prova de muitos outros factos (29), que não derivam do Tema da Prova e a este são alheios (factos 16 e 21 a 26 da matéria assente).

O) Não foi dada à A. a possibilidade de contraditar tais factos.

P) O que constitui violação do princípio do contraditório e de justa composição do litígio que subjaz ao julgamento (art. 3.°, 6.°, 410.° e 596.° do C.P.C.) e da tutela jurisdicional (art. 20.° da C.R.P.).

Q) Com o que se mostra nula a fixação da matéria constante dos pontos 21 a 27 da matéria provada, e sobre a qual assenta a decisão recorrida.

R) O consentimento informado é um conceito técnico (art. 14.° da Lei da PMA) que não admite outras formas de "consentimento".

S) Está cabalmente provado que o R. não prestou consentimento informado à inseminação que determinou o nascimento da CC.

T) A sentença recorrida, pese embora tenha fixado que o R. não deu o seu consentimento prévio à inseminação, não retira deste facto qualquer consequência legal.

U) A sentença recorrida omite na totalidade todo o regime legal fixado na lei da PMA para determinar a Parentalidade, nomeadamente os arts. 14.°, 15.° e 20.° da Lei 32/2006.

V) A presunção de paternidade, face à nova redacção da lei da PMA, não deriva do casamento, mas deriva do consentimento à inseminação.

W) A actual Lei da PMA deixou de fazer derivar a paternidade da presunção legal que era atribuída ao marido da mãe, e passou a reconhecer apenas a parentalidade quando há consentimento prévio à inseminação.

Podendo dar consentimento o marido, o companheiro unido de facto, ou simplesmente um terceiro autorizado pela mãe.

X) A actual lei também permite a inseminação da mulher só e manda que não se faça averiguação de paternidade.

Y) A CC tem direito à Verdade. Porque daí derivam direitos fundamentais, como o direito à identidade genética, à historicidade e hereditariedade (art. 15.° n.º 2 a 4 da Lei 32/2006).

Z) O acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 14.°, 15.° e 20.° da Lei da PMA e ainda o disposto no art. 1.839.° do C.C.

AA) O acórdão recorrido tutela as falsas declarações prestadas pelo aqui R. perante o Registo Civil.

BB) A parentalidade não depende de qualquer acordo de vontades por livre arbítrio. Estamos em sede de direitos indisponíveis.

CC) Não é o facto de ter vivido com a mãe da CC durante 3 ou 4 meses e durante 2 meses a conviver com a menor que confere direitos de parentalidade.

DD) A paternidade só é fixada com base nos laços de sangue ou nos casos fixados na lei para protecção dos menores (adopção, apadrinhamento civil).

EE) Não há uma contratualização da parentalidade de que possa derivar o abuso de direito.

FF) O acórdão recorrido vale-se da tutela que dará a progenitura masculina à menor. Porém, sem qualquer fundamento legal após a aprovação da Lei 17/2016.

GG) A presunção legal de paternidade (art, 1.826.° do C.C.) é ilidível. E foi nesta acção ilidida face à não convivência do R com a A. ao tempo da concepção, à esterilidade do R e à prova do recurso a banco de esperma.

HH) A Procriação Medicamente Assistida tem protecção constitucional que a admite sujeita à protecção da Dignidade de toda a pessoa humana envolvida no processo.

II) Ao negar o direito da CC à verdade da sua ascendência, o acórdão recorrida viola o disposto nos arts. 68.° n.º 1 e) e art. 1.° da C.R.P.

JJ) O acórdão recorrido omite todo o regime legal aplicável por força da lei da PMA. Negando a Justiça que ao caso concreto é devido (art. 20.° da C.RP.).

KK) A CC tem direito à sua historicidade pessoal, identidade genética e à protecção na saúde que só a verdade pode trazer (art. 26.° n.º 1 e 3 da CRP).

LL) Ao ignorar a identidade genética da CC, a violação do seu direito a conhecer (nos casos definidos na lei) a sua historicidade e hereditariedade a troco de uma parentalidade que falta à verdade, feita de falsas declarações. o Tribunal a quo violou o art. 67.° n.º 2 al. e) e no art. 1º da CRP.

MM) O acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do direito e violou o disposto nos arts. 3.°, 6.°, 410.°, 466.°, 591.° n.º 4, 155.°, 596.° e 615.° do C.P.C. e art. 1.º, 20.°, 26.°, 36.° e 67.° da C.R.P. e ainda os arts. 14.°, 15.° e 20.° da Lei 32/2006.

NN) Pelo que, deve revogar-se a decisão recorrida e, em sua substituição, ser proferido Acórdão que julgue procedente o pedido, declarando-se afastada a paternidade do aqui R. quanto à menor CC, ordenando-se o cancelamento da paternidade e avoenga paterna, assim como caducado o apelido DD da menor, no competente assento de nascimento.

O réu contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver: - Nulidade da decisão sobre a matéria de facto; tema de prova; - Falta de fundamento legal para atribuição ao réu da parentalidade: - Falta de consentimento informado; - Falsas declarações no registo; - Inconstitucionalidade.

III.

Estão provados os seguintes factos: 1- No dia … de … de 2016 nasceu CC.

2- A menor é filha da aqui A. EE.

3- Do assento de nascimento de CC consta como pai o então marido da mãe.

4- O assento de nascimento da menor foi feito com base nas declarações do pai.

5- BB sofre de doença que determinou a sua esterilidade.

6- Desde que são casados (2/06/2012), A. e R. têm conhecimento da esterilidade.

7- Por isso em 2012 adoptaram uma criança - FF.

8- A A. nunca se conformou com o facto de não poder ter um filho biológico.

9- O casal fez duas tentativas de recurso a técnicas de procriação medicamente assistidas (PMA), com recurso a esperma de dador.

10- Tais tentativas mostraram-se falíveis e daí não resultou qualquer gravidez.

11- Fruto de desentendimentos diversos, em Março de 2015 A. e R. separam-se de facto.

12- Nessa altura, a aqui A. decidiu recorrer a inseminação artificial com recurso a banco de esperma.

13- A A. em Maio de 2015, foi a ..., onde esta técnica de PMA é praticada e engravidou de dador anónimo.

14- Na Clinica IVI ... foi feito todo o procedimento para que a gravidez...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT