Acórdão nº 2/16.5TRPRT-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Abril de 2018

Magistrado ResponsávelPIRES DA GRAÇA
Data da Resolução05 de Abril de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça Nos autos de inquérito n.º 2/16.5TRPRT., da Procuradoria-Geral Distrital junto do Tribunal da Relação do ... (TRP),- “instaurados para averiguar da eventual prática de crime de abuso de poder, por parte do senhor Procurador da República, Dr. AA,,” o Exmo. Magistrado do Ministério Público requereu à Exma Desembargadora daquele Tribunal,, servindo de Juiz de Instrução Criminal, a remessa do presente incidente de quebra de sigilo profissional, a este Supremo, pois que: “Nos referenciados autos de inquérito, instaurados para averiguar da eventual prática de crime de abuso de poder, por parte do senhor Procurador da República, Dr. AA, aconteceu o seguinte: Segundo o denunciante, o senhor BB, os factos que integrariam o eventual crime de abuso de poder, e que terão ocorrido nas instalações do TIC do ..., teriam sido presenciados por dois senhores advogados - o Dr. CC (mandatário daquele BB), e Dr. DD (mandatário de um outro interveniente processual, o senhor EE).

Esclarece-se que todas essas pessoas se encontravam nas instalações do TIC do ... a aguardar que se iniciasse, naquele TIC, a inquirição de uma testemunha, no âmbito da instrução requerida no NUIPC 356/13.5PRPRT, onde aqueles, BB e EE, eram arguidos/assistentes.

Os senhores advogados encontravam-se, segundo o denunciante, à porta da sala onde se iria realizar a dita inquirição e teriam assistido à abordagem que o dito senhor Procurador terá feito ao senhor BB, tendo-se deslocado todos, de seguida, para o interior do gabinete daquele senhor Procurador da República, no TIC, onde terão assistido ao diálogo entre o mesmo senhor Procurador e o senhor BB.

Ora, o senhor advogado, Dr. CC, inquirido em 22/1/16 (fls. 32 destes autos) não invocou os deveres decorrentes do sigilo profissional e prestou livremente depoimento perante o subscritor deste requerimento.

Já o senhor advogado, Dr. DD, ao ser inquirido, em 29/1/16, recusou-se a depor, invocando o referido sigilo profissional.

Face a esta diferença de posições dos mencionados senhores advogados, o M.ºP.º solicitou à Ordem dos Advogados um parecer, nos termos do n.º 2, do artigo 135º, do CPP.

Nos termos desse parecer, que consta destes autos, de fls. 126 a fls. 130, "Os factos de que os senhores advogados, Dr. DD e Dr. CC demonstram ter conhecimento, e que contendem com a matéria sob investigação no processo n.º 2/16.5TRPRT, que corre termos pela Secção de Processos da PGD do ..., são factos sujeitos a segredo profissional.

Esta conclusão foi tirada com base no seguinte raciocínio: "Desta exposição retiramos que há dois advogados, indicados como testemunhas, que conhecem factos atinentes com o processo, e cujo conhecimento lhes adveio pelo exercício da advocacia. Na verdade, nas circunstâncias de tempo e lugar a que se reportam os autos, o senhor Dr. DD e o senhor Dr. CC, no exercício da sua profissão, e por causa desse mesmo exercício, terão assistido a uma determinada conversa, à qual, não fosse o mandato de cada um deles não teriam assistido. Aliás, o teor da conversa versará sobre matérias atinentes com os mandatos." Segundo a Ordem dos Advogados, os depoimentos daqueles senhores advogados, a ser prestados, infringiriam o disposto no artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados: "O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços" Face a tal parecer, relativamente ao qual não encontramos fundamento sério para contrariar, teremos de concluir que a recusa do senhor Dr. DD em prestar depoimento foi legítima e que o Dr. CC, quando foi inquirido, se deveria ter recusado a depor.

Este senhor advogado foi notificado para, querendo, solicitar junto do Conselho Regional do ... da Ordem dos Advogados a dispensa do sigilo profissional mas, até à presente data, não foi junta aos autos essa dispensa.

Ora, no processo, torna-se absolutamente indispensável a prestação de depoimentos válidos, por parte daqueles senhores advogados, sem o que, em nosso entender, o M.ºP.º não poderá deduzir acusação contra o senhor Procurador da República visado.

Este negou os factos indiciariamente carreados nos autos contra si, apresentando uma versão não coincidente com a do senhor BB, pelo que a existência de um único depoimento válido, a nosso ver, parece-nos insuficiente para decidir o processo.

Existem outros depoimentos em que os inquiridos declaram nada saber e uma mensagem de telemóvel que apenas permite dar como provado que o senhor BB perguntou ao amigo, FF, quem era o homem que esteve connosco no Sábado e ele respondeu-lhe: "AA".

Face ao teor desta mensagem, a testemunha FF retratou-se parcialmente.

Importará agora saber, face ao disposto no artigo 135.º, nº 3, do CPP, se o interesse preponderante na decisão a proferir será o da manutenção ou, pelo contrário, o da quebra do sigilo profissional.

No caso concreto, parece-nos que o interesse da manutenção do sigilo profissional não fará qualquer sentido, dado que os factos presenciados pelos senhores advogados não serão suscetíveis de prejudicar os interesses dos seus patrocinados. O próprio Dr. CC dispôs-se, mesmo, a solicitar a dispensa do sigilo profissional por ser esse, segundo o próprio interesse do seu cliente.

Citando o próprio parecer do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, constante de fls. 126 destes autos "... é inerente à relação advogado-cliente o sigilo enquanto sustentáculo da confiança que o cliente deposita no advogado, mas que, ao mesmo tempo, lhe está subjacente um interesse público que ultrapassa o fundamento estritamente contratual do instituto do segredo.

Na verdade, atenta a função que o advogado exerce na administração da justiça, curial se torna que os factos de que tem conhecimento no exercício da sua atividade estejam a coberto do seu dever de guardar sigilo e protegidos pelo seu direito de invocar escusa quando instado a depor sobre eles." Por outro lado, o crime de abuso de poder, previsto no artigo 382.º, do Código Penal, está inserido sistematicamente na Secção III - Do abuso de autoridade - Do capítulo IV - Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas - do título V- Dos crimes contra o Estado, do nosso Código Penal.

Segundo Paula Ribeiro de Faria, in "Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, 2001, Parte Especial, Tomo III, páginas 774/775, "Está em causa a autoridade e a credibilidade da administração do Estado ao ser afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços. Corresponde esta exigência, de resto, a um princípio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos artigos 266.°, 268.º e 269.º-1 da CRP. Em particular o n.º 2 do artigo 266.º refere que «os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade» (...) cf. também o artigo 3.º-3 do DL 28/84, de 16/1, relativo ao EDFAACRL, onde se faz menção ao dever geral dos funcionários e agentes de atuar no sentido de criar no público confiança na Administração Pública, em especial no que à imparcialidade diz respeito".

Como já adiantamos acima, no caso concreto nem sequer está em causa, na manutenção do sigilo profissional, o interesse da manutenção da confiança entre o advogado e o seu cliente: no caso do Dr. CC, é do interesse do seu próprio cliente (o senhor BB) que ele revele os factos que presenciou; no caso do Dr. DD, os factos que poderia revelar e que presenciou não diriam respeito ao seu cliente (o senhor EE.

Estaria em causa, então, o supra apontado interesse público da manutenção do sigilo do advogado - a função que o advogado exerce na administração da justiça.

Ora, a nosso ver, este interesse público de salvaguardar o sigilo profissional em homenagem ao princípio da boa administração da justiça deverá ceder perante a necessidade de o Estado averiguar se um dos seus mais qualificados agentes da administração da justiça infringiu, ou não, o seu fundamental dever de atuar com imparcialidade.

Pelo exposto, parece-nos preponderante o interesse da quebra do sigilo profissional dos referidos advogados.

Assim...

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