Acórdão nº 3452/15.0T8VIS-D.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Abril de 2018

Magistrado ResponsávelJOSÉ RAINHO
Data da Resolução17 de Abril de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção): I - RELATÓRIO AA e mulher BB, demandaram, por apenso aos autos de insolvência de CC e mulher DD (correntes pela Comarca de Viseu, Viseu - Inst. Central - Sec. Comércio - J1) e mediante o processo especial de restituição de bens a que se refere o art. 141º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os Insolventes CC e mulher DD, a respetiva Massa Insolvente e os Credores da Massa Insolvente, peticionando a condenação dos Réus a reconhecerem que o negócio de trespasse da farmácia a que aludem é nulo por simulação e que os Autores são os donos e legítimos possuidores do inerente estabelecimento, decretando-se a separação e a restituição do mesmo aos Autores.

Alegaram para o efeito, em síntese, que foi apreendido para a massa insolvente o estabelecimento de farmácia a que se reportam (“EE”).

Ocorre, porém, que tal estabelecimento é propriedade dos Autores, e não dos Insolventes.

Efetivamente, o Insolvente (que era farmacêutico) figurou no ato de trespasse da farmácia como adquirente da farmácia por mero favor aos Autores (sendo que é irmão do Autor), porém tal resultou de um acordo simulatório que visou iludir as exigências da lei da época (que impedia que fosse proprietário de uma farmácia quem não fosse farmacêutico). O propósito foi, na realidade, trespassar o dito estabelecimento aos Autores (que não eram farmacêuticos).

Quem pagou a farmácia foram os Autores.

A farmácia foi gerida inicialmente pelo Autor, e depois pelo Insolvente, porém sempre no interesse dos Autores.

O Insolvente funcionou apenas como adquirente formal e como possuidor em nome dos Autores, sempre tendo reconhecido os Autores como proprietários do estabelecimento, prestando-lhes contas regularmente e entregando-lhes os proventos da atividade que levava a cabo.

Sucede que, face a alteração legislativa que deixou de obrigar à qualidade de farmacêutico para se ser proprietário de farmácia, os Autores interpelaram o Insolvente para que procedesse à “regularização” da Farmácia, mas este recusou-se a efetuar a transferência do estabelecimento para os seus donos, razão pela qual tal bem se manteve na sua detenção e, decretada que foi a insolvência, acabou apreendido para a Massa Insolvente.

Contestaram a Massa Insolvente e os Insolventes, concluindo pela improcedência da ação.

Disseram estes últimos, em síntese, que a alegada simulação inexistiu, sendo que a farmácia foi adquirida pelo Insolvente para si, embora com a ajuda do irmão, o Autor. Este limitou-se a financiar (emprestando dinheiro) tal aquisição.

Porém, no início de 2008 o Insolvente deixou de efetuar pagamentos aos Autores por entender que o empréstimo estava já pago.

Acrescentaram que o estabelecimento sempre foi explorado e feito prosperar pelos Réus.

Disse a Massa Insolvente que o estabelecimento pertence aos Insolventes e não aos Autores, razão pela qual foi bem apreendida para os fins da insolvência.

Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença onde se decidiu: «- Declarar os Autores donos e legítimos possuidores do estabelecimento comercial de farmácia, composto pelo alvará de farmácia emitido pelo “GG” com o nº ..., titulado pela “EE”, sita na Av. Dr. ..., nº …., ....

- Decretar a separação e restituição do estabelecimento comercial denominado “EE” aos Autores.».

Inconformados com o assim decidido, apelaram a Ré Massa Insolvente e a Credora FF, S.A..

Fizeram-no com êxito, pois que a Relação de Coimbra revogou a sentença recorrida e absolveu os Réus dos pedidos.

É agora a vez de os Autores manifestarem a sua insatisfação, pedindo revista.

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes as seguintes conclusões: 1ª. O acórdão recorrido, ao ter revogado a decisão proferida em primeira instância, procedeu a uma errónea interpretação e aplicação da lei.

2ª. Contrariamente ao decidido, os AA. Recorrentes são donos e legítimos possuidores do estabelecimento comercial de farmácia, composto por alvará emitido pelo “GG” com o nº ..., titulado pela “EE”, sita na Av. Dr. ..., nº … ..., por a haverem adquirido por usucapião. Na verdade, 3a. Os AA. Recorrentes alegaram e provaram os atos materiais de posse que praticaram sobre o estabelecimento (eles próprios diretamente ou por intermédio do insolvente CC), atos de posse que foram praticados de boa-fé, de forma pública e pacífica, ao longo de mais de vinte anos, assim adquirindo o direito de propriedade por usucapião.

4a. Ao contrário do que inculca o douto acórdão recorrido, os AA. Recorrentes, apesar de não terem usado a fórmula sacramental “na falta de outro título, adquiriram por usucapião”, a verdade é que de modo claro e inequívoco, invocaram tal modo de aquisição originária.

5a. Como é jurisprudência pacífica, não existem fórmulas sacramentais ou requisitos protocolares insubstituíveis, nem tem que seguir-se um padrão rígido, pois tanto na jurisprudência como na doutrina, se entende pacificamente a admissibilidade da alegação ou invocação implícita da usucapião.

6ª. A esse propósito, ninguém pode olvidar os ensinamentos dos insignes Mestres Antunes Varela e Pires de Lima (obra citada) “se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer com toda a certeza (até prova em contrário) aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente” (sic) (entendimento que é seguido na jurisprudência citada). Assim, 7a. Considerando os factos materiais de posse, as características desta, a duração da mesma, abundantemente provados, é manifesto que os AA. Recorrentes invocaram a aquisição originária da propriedade da farmácia, pese embora não se tenham referido expressamente ao instituto da usucapião.

8a. Contrariamente ao doutamente decidido, também ressalta à evidência a publicidade da posse dos AA. Recorrentes, pois ao contrário do que inculca o douto acórdão, para que a posse seja pública não é necessário que ela seja conhecida de toda a gente, mas que ela seja exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

9a. Resulta dos factos provados que a posse era conhecida do insolvente CC e mulher, pelos familiares e até pelos colegas da zona onde se localiza a farmácia, não podendo, por isso, a posse deixar de ser tida como pública, ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido.

10ª. Ainda e sempre com o respeito devido, carece de sentido e fundamento o vertido no douto acórdão recorrido quando aí se consigna que a farmácia está sujeita a registo e que o existente não beneficia os ora recorrentes.

11ª. Na verdade, resulta da factualidade provada que o início da posse dos AA. sobre a farmácia ocorre com a celebração do contrato de trespasse, em 22/03/1982, pelo que a presunção de propriedade derivada do registo do alvará da farmácia a favor do insolvente CC não pode prevalecer sobre a posse daqueles que conduziu à usucapião, atenta a sua anterioridade a tal registo.

12a. Considerando a factualidade dada como provada, é manifesto que os AA. adquiriram o direito de propriedade sobre a farmácia por usucapião.

13a. Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação dos art°s. 1251.°, 1259.°, nº 1, 1260º nºs 1 e 2 (ex-vi do art. 350.°, nº 2), 1262.°, 1287.°, 1252.°, nº 2, 1296.°, 1298.°, al.

b), todos do Código Civil, os quais deverão ser interpretados no sentido que melhor consta da motivação deste recurso que aqui se dá por integralmente reproduzida por razões de economia. Sem prescindir, 14a. A douta decisão recorrida ao julgar improcedente a ação e ordenar que o estabelecimento “EE” deve manter-se na massa insolvente ignora em absoluto a factualidade dada como provada e incorre em erro de interpretação e aplicação dos art°s. 334.° do C.C. e 46.° e 141.°, nº 1, als.

  1. e c) do CIRE. Com efeito, 15a. Apesar de os factos provados, de forma abundante, evidenciarem que os insolventes sempre reconheceram os AA./recorrentes como exclusivos donos e legítimos possuidores da farmácia e que o insolvente CC, apesar de ter figurado na escritura de trespasse formalmente como adquirente (pelas razões constantes da factualidade provada) sempre foi um possuidor precário, gerindo e administrando a farmácia no interesse daqueles, mesmo assim a massa insolvente permite-se pedir que o bem se mantenha na massa, apesar de o mesmo nunca ter feito parte do acervo ativo do património dos insolventes.

    16a. A massa insolvente (em substituição dos insolventes), ao adotar tal conduta, atua em claro abuso de direito, uma vez que tal pretensão excede clamorosamente os limites da boa-fé, sendo, por isso, ilegítima, por manifestamente abusiva. Ora, 17a. O douto acórdão recorrido, ao ordenar a manutenção da farmácia na massa insolvente, dá assim guarida à pretensão (ilegítima e) ilegal desta massa, por consubstanciar um frontal desrespeito do art. 334.° do C.C .. Por outro lado, 18a.- Estando evidenciado à saciedade que os AA. são donos e legítimos possuidores da farmácia e que o insolvente CC foi apenas um possuidor precário (em nome e no interesse daqueles) jamais o douto acórdão podia ter...

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