Acórdão nº 158/15.4T8TMR.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 03 de Maio de 2018

Magistrado ResponsávelROSA TCHING
Data da Resolução03 de Maio de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL I – Relatório 1. AA instaurou ação declarativa de impugnação de paternidade presumida, com processo ordinário, contra BB e CC, pedindo que se declare que o seu pai não é DD mas, antes, o réu CC e que este facto seja registado na Conservatória do Registo Civil.

Alegou, em síntese, que DD consta no Registo Civil como sendo seu pai, apenas por ser o marido da sua mãe, à data do nascimento da autora, mas o seu pai biológico é o réu CC.

Mais alegou que teve conhecimento deste facto porque, em junho de 2014, após o falecimento de DD, ocorrido em 07.03.2014, a sua mãe confessou-o a si, à sua irmã e a outros familiares mais próximos.

  1. Regularmente citado, o réu CC contestou, impugnando parte dos factos alegados e sustentando, em síntese, que a presente ação e a imputação da paternidade da autora ao réu é uma invenção desta, apenas para se tornar herdeira dele.

    Além disso, a autora já afirmava que era filha do réu, há mais de seis e de nove anos, pelo que a sua pretensão não poderá ser atendida por efeito da caducidade.

  2. Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, procedendo-se, de seguida, à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova.

  3. Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que, não obstante considerar que a autora completou os dezoito anos de idade em 31.01.1992 e que, por isso, à data da propositura da ação (27.01.2015), já se mostrava ultrapassado o prazo de 10 anos previsto no art. 1842º, nº 1, al. c) do C. Civil, afirmou a inconstitucionalidade desta norma bem como a “imprescritibilidade” da ação de impugnação de paternidade presumida, pelo que, recusando a aplicação da dita norma, julgou a ação procedente e, em consequência, declarou qua a autora AA não é filha de DD, sendo, antes, filha de CC.

  4. Inconformado, recorreu o réu, CC, para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 14.09.2017, decidiu não enfermar a norma do art. 1842º, nº1, al. c) do C. Civil de inconstitucionalidade material e, revogando a decisão recorrida, julgou verificada a exceção de caducidade e absolveu os réus do pedido.

  5. Inconformada com este acórdão, a autora dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem: « A) - O prazo para propor a presente ação é imprescritível, sendo que o artigo 1842° do Código Civil é inconstitucional.

    1. - Após a confirmação de que o recorrido é pai biológico da recorrente, não pode por uma questão de caducidade ser negado esse bem tão valioso que é o conhecer a paternidade biológica.

    2. - O Direito legislado não pode afastar o direito natural ou seja o direito ao conhecimento da proveniência biológica.

    3. - Assim foi entendido e a nosso ver bem pelo Tribunal de primeira Instância, em que declarou que a recorrente AA, não é filha de DD, (marido de sua mãe) mas sim filha de CC, ora recorrido.

    4. - Pelo que a decisão do Tribunal "a quo" deve ser revogada, mantendo-se a decisão proferida em primeira instância».

    Termos em que requer seja dado provimento ao presente recurso, e em consequência, seja revogada a decisão ora recorrida, mantendo-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.

  6. O réu contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

    8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

    *** II. Delimitação do objecto do recurso Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].

    Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se a norma do artigo 1842º, nº 1, al. c) do Código Civil, na redação dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, na medida em que limita a possibilidade de impugnação da paternidade presumida, a todo o tempo, pelo filho, é inconstitucional.

    * III. Fundamentação 3.1. Fundamentação de facto As instâncias consideraram provados os seguintes factos: 1º- A autora nasceu em 31 de Janeiro de 1974 (alínea A) dos factos assentes); 2º- Tendo sido registada, na Conservatória do Registo Civil de … como filha de BB e de DD (alínea B) dos factos assentes); 3º- BB e DD, casaram, um com o outro, em 15 de Agosto de 1964 (alínea C) dos factos assentes); 4º- No dia 7 de Março de 2014, DD faleceu, no estado de casado com BB (alínea D) dos factos assentes); 5º- O réu CC é viúvo (alínea E) dos factos assentes); 6º- A ré BB manteve relações sexuais de cópula completa com CC (resposta ao n° 2 dos temas da prova); 7º- Tendo sido das relações sexuais que manteve com este CC que nasceu a autora (resposta ao n.º 3 dos temas da prova); 8º- A ré BB padece da doença de Alzheimer há vários anos (resposta ao n° 4 dos temas da prova).

    *** 3.2. Fundamentação de direito Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se com a questão da inconstitucionalidade da estatuição legal dos prazos de caducidade do direito do filho de maioridade ou emancipado de impugnar a sua paternidade presumida.

    3.2.1. Enquadramento preliminar Estamos no âmbito específico de uma ação de impugnação da paternidade presumida respeitante a filho nascido ou concebido na constância do matrimónio e estabelecida em relação ao marido da mãe no artigo 1826.º, n.º 1, do C. Civil.

    Trata-se, no dizer de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[2], de uma ação com vista a possibilitar a correção de uma atribuição legal e automática de paternidade que se julgue não corresponder ao vínculo real de parentesco que decorre dos direitos fundamentais à integridade e à identidade pessoal consagrados, respetivamente, nos arts. 25º, nº 1 e 26º, nº1, ambos da CRP, na medida em que o conhecimento da ascendência verdadeira é um aspeto da personalidade individual e uma condição de gozo pleno daqueles direitos fundamentais. De resto, foi para evitar o reconhecimento de vínculos manifestamente fictícios, isto é, sem apoio na realidade biológica que a Reforma de 1977 ao Código Civil de 1966, introduziu alterações profundas na ação de impugnação, reconhecendo, expressamente, a legitimidade ativa do filho e da mãe casada para impugnar a presunção “pater is est… ” (cfr. art. 1839, nº1 do C. C.), e alargando o prazo de caducidade e a forma de o contar (cfr. art. 1842.º do C. C).

    Mas, a verdade é que, como referem aqueles mesmos autores[3], «a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, a força redutora da verdade biológica e a igualdade do estatuto jurídico de todos os filhos, ainda não tiveram o mérito de afastar o regime tradicional e de fazer consagrar a admissibilidade da impugnação a todo o tempo».

    Por isso é que, como nos dá conta o recente Acórdão do STJ, de 08.02.2018 (revista nº 5434/12.5TBLRA.C1.S1), « a problemática da “(im)prescritibilidade” das ações para reconhecimento de paternidade e para impugnar a paternidade presumida tem vindo a ser objeto de acesa discussão doutrinária e jurisprudencial, que desembocou, entre nós, em duas linhas essenciais de orientação.

    De um lado, emergiu uma corrente inovadora, já significativa em 1977, a sustentar que o direito à identidade biológica como dimensão dos direitos fundamentais à identidade e à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, robustecidos pela garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano, assentes nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como o direito de constituir família (art.º 36.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental) é incompatível com o cerceamento, através de prazos de caducidade, do único meio de efetivar esse direito e que é a ação judicial. Nessa linha, considera-se, em síntese, que as razões de segurança jurídica, de ordem social e patrimonial, em torno da instituição familiar e em prol da estabilidade das relações de parentesco, e sobretudo de salvaguarda da reserva de intimidade da vida privada do investigado em que radicam tais prazos de caducidade não assumem, na atualidade, importância que deva ser equiparada ou sobreposta ao interesse inalienável do cidadão na sua filiação biológica.

    De outro lado, perfilha-se uma orientação, de certo modo tributária da doutrina subjacente às soluções consagradas no Código Civil de 1966, no sentido de que o exercício dos referidos direitos fundamentais não deve ser irrestrito a ponto de sacrificar interesses de ordem pública e de natureza pessoal que se vão consolidando ao longo do tempo, para mais ante a inércia injustificada dos interessados no reconhecimento da verdade biológica da filiação, devendo, por isso, ser compatibilizados os interesses conflituantes através do estabelecimento de prazos de caducidade razoáveis».

    * 3.2.2. A norma cuja constitucionalidade é questionada no âmbito do presente recurso de revista é a do artigo 1842º, nº 1, al. c) do Código Civil, na redação dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, no segmento em que estabelece o prazo de caducidade de 10 anos da ação de impugnação da paternidade presumida, impondo que tal ação deva ser proposta pelo filho nos 10 anos subsequentes à sua maioridade ou emancipação.

    Persiste a recorrente na defesa da tese seguida na sentença do Tribunal de 1ª Instância e que recusou a aplicação desta norma, com o fundamento...

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