Acórdão nº 0852/15 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 20 de Outubro de 2015

Magistrado ResponsávelMADEIRA DOS SANTOS
Data da Resolução20 de Outubro de 2015
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo: O MºPº interpôs a presente revista do acórdão do TCA-Sul, constante de fls. 1038 e ss., o qual confirmou na íntegra a sentença do TAF de Lisboa que indeferira a providência cautelar onde o MºPº pedira que o Ministério das Finanças e o Secretário de Estado da Cultura fossem intimados a absterem-se de alienar um conjunto de obras do artista Joan Miró.

O recorrente terminou a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões: 1. Impõe-se a intervenção desse mais alto órgão de cúpula da justiça administrativa, face ao erro de julgamento clamoroso do Venerando Tribunal recorrido, com o prejuízo daí decorrente para interesses públicos de muito relevo e para dissipar dúvidas sobre a matéria em apreço e sobre o quadro legal que a regula, bastante complexos, havendo utilidade prática na apreciação das questões suscitadas, tendo em vista uma boa administração da justiça, e por ser necessária orientação jurídica esclarecedora do STA, devendo o recurso ser admitido, nos termos do art. 150.º do CPTA.

  1. O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre as questões jurídicas suscitadas nas conclusões 4.ª 5.ª e 7.ª a 9.ª da alegação de recurso interposto pelo Ministério Público, decorrentes do facto de ali se invocar que a não dedução de oposição pelas entidades Requeridas implicava confissão, respeitante aos factos alegados no Requerimento inicial, o que tem efeito cominatório pleno, relativamente a estes mesmos factos, nos termos dos art. 118.º, n. 1, do CPTA, e 352.º e 358.º do C. Civil e 366º n.º 5, e 574º, ns.º 1 e 2, do CPC, aplicáveis ex vi art. 1º e 140º do CPTA.

  2. Em face do exposto, o Tribunal a quo ao proferir o, aliás douto, Acórdão recorrido não apreciou todas as questões jurídicas de que tinha que tomar conhecimento e que lhe foram suscitadas, sendo consequentemente nulo, por omissão de pronúncia de acordo com o preceituado na alínea d), do nº 1, do art 615°, com referência aos arts. 95º, nº 1, do CPTA, e 608°, n.° 2, do CPC, aplicáveis ex vi art. 1º do CPTA.

  3. O princípio da livre apreciação da prova sofre restrições, nomeadamente quando a lei exija para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada, como seja a prova por confissão, por presunções legais e por documentos autênticos, pelo que a matéria de facto dada como não provada tem que ser eliminada e dada como não escrita, devendo ter sido dados como provados todos os factos articulados no requerimento inicial - art. 118º nº 1, do CPTA, 342º, n.º 2, 344º, 347º, 349º, 350º, 352º e 358º, do C. Civil e 366º, nº. 5, e 574º, ns.º 1 e 2, do CPC, aplicáveis ex vi art. 1º do CPTA.

  4. Devem, assim, para além dos factos já assentes, ser considerados como provados, por acordo das partes e não junção de quaisquer meios de prova por parte dos Requeridos, todo o conteúdo factual dos artºs. 8º, 10º, reproduzido o conteúdo das alíneas a) a d), inclusive, 13º, 26º e 27º relativamente ao art. 20º no segmento «todo o espólio do pintor e artista Joan Miró, que em tempos pertenceu a sociedades do universo A……., passou a ser titularidade do Estado português, recebido como dação em pagamento de créditos, desde finais de 2012», e quanto ao 24º, o segmento «...que pertenceu o empresas do universo empresarial A……. e agora pertence ao Estado Português...» deve ser inserido no ponto 2 da matéria de facto, a seguir à palavra «Londres», todos do Requerimento inicial.

  5. Deve igualmente ser considerada não escrita e eliminada toda a matéria de facto considerada não provada, dos pontos 1 a 5, inclusive, e respetivas considerações que lhes respeitam, constantes da «apreciação crítica da prova», e também a matéria de facto constante do ponto 18 da matéria assente, a qual não foi invocada por nenhumas das partes e que constitui matéria de exceção, 7. Sendo certo que as invocadas intervenções do representante do técnico designado pela DGTF só através das atas certificadas podiam ser dadas como provadas, tudo nos termos dos preceitos já supra citados e do art. 150º, n.º 4, do CPTA, com referência aos arts. 342º, 364º, n.º 1, do C. Civil e 662º, n.º 1, do CPC, aplicáveis por força das normas citadas do CPTA.

  6. O douto Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao entender que o Ministério Público devia ter impugnado a matéria de facto assente, mediante a impugnação e indicação concreta da prova feita em julgamento, através do invocado nas conclusões 4 a 9, 11, 13 a 15 e 23 a 29, quando ali se limita o Recorrente a invocar o que resultava das razões de direito atrás alegadas e a sua argumentação ou apreciação jurídica diversa das conclusões extraídas pelo Tribunal da 1.ª instância.

  7. As empresas B………, SA e C………, SA não são empresas “particulares”, tal como mencionado, certamente por lapso, no douto Acórdão em apreço, tratando-se de entidades públicas reclassificadas no perímetro das contas públicas, integrantes do sector empresarial do Estado, detidas exclusivamente por este que detém 100% do capital social e tem amplos poderes de superintendência das mesmas, podendo decidir não vender as obras de arte em causa, desde que assim o entenda, ou a essa conduta seja intimado.

  8. O interesse em agir na situação em apreço ou a utilidade da procedência da presente providência cautelar afere-se em função do âmbito de interesses públicos especificamente postos a cargo das entidades Requeridas e respetivas atribuições, e também das suas competências, assim como dos factos que devem ser dados como assentes, resultando dos art. 14º, 16º, n.º 1, 25º, n.º 1, 33º, 55º, ns.º 1, 2 e 3, 64°, n.° 1, da Lei n.° 107/2001, de 8/09, decorrentes do art. 78º da CRP, processo de reprivatização do A…….., pelo despacho n.° 825/11-SETF, de 3 de Junho de 2011, dos art. 10º, n.º 1, 15º, 24º, 25º, n.º 5, al. b) e 6, 37º, n.º 1 e 39º do DL n. 133/2013, de 3/10, e dos arts. 5º e 12º, DL nº 71/2007, de 27-03.

  9. Da Lei de Bases do Património Cultural (Lei nº 107/2001 -LBPC, citada), e do art. 78º da CRP, em geral, resulta um dever genérico de preservação, defesa e valorização do património cultural, devendo ser disponibilizada a fruição das obras de Miró a toda a comunidade portuguesa, o que incumbe, sobretudo, ao Estado, implicando para este um conjunto de direitos e deveres que ultrapassam os resultantes da sua qualidade de proprietário, e que às entidades Requeridas incumbe igualmente defender.

  10. O Ministério das Finanças, abstratamente, por lei, detém poderes de orientação de gestão, gerais e específicas, e poderes de controlo financeiro, das referidas empresas, que compreendem, designadamente, a análise de sustentabilidade e a avaliação de legalidade, economia, eficiência e eficácia da sua gestão, impondo a lei que determinados negócios de disposição de bens sejam submetidos à sua prévia autorização (artºs.10º n.º 1, 15º, 24º, 25º, nsº. 5, al. b) e 6, 37º, n.º 1, e 39º DL n. 133/2013, de 3/10, e dos arts. 5º e 12º, DL n. 71/2007, de 27-03).

  11. Assim como a Secretaria de Estado da Cultura pode obstar à venda, ao não autorizar a saída das obras do nosso país sem a sua prévia inventariação e classificação, dada a sua natureza de grande relevância cultural, nos termos do artigo 18º, n.º 2, da referida Lei de Bases do Património Cultural - cfr. também os arts. 14º, 16º, n.º 1, 25º, n.º 1, 33º, 55º, nºs. 1, 2 e 3, 64°, n.° 1 da mesma LBCP.

  12. Portanto, in casu, as referidas disposições de Direito Administrativo vinculam a administração do património cultural a determinar a abertura e instrução de um procedimento de avaliação e classificação nesta situação, o qual já foi impulsionado por terceiros como provado, cujo início e processamento é obrigatório, para defesa do interesse público, nos termos dos arts. 25º a 30º da citada Lei de Bases do Património Cultural, o que é evidente e releva também para a ação principal.

  13. Assim, as entidades Requeridas, como detentoras e guardiãs do património cultural público, quer na qualidade de representantes máximos do Estado e da comunidade no que se refere a obras de arte de grande relevo, quer no âmbito do direito de tutela, ou ainda sendo o Estado o proprietário das referidas obras, podem, devem e têm interesse em não as vender, sem as inventariar, classificar e avaliar, pois que o interesse público decorrente da lei a tanto as obriga.

  14. Pelo que, a colocação no mercado externo das obras do pintor Joan Miró, sem que previamente a Secretaria de Estado da Cultura, através da Direção Geral do Património Cultural, tenha procedido à sua inventariação e classificação, como comprovado, constitui uma manifesta ilegalidade para efeitos da alínea a), do n.º 1, do art. 120º do CPTA, devendo as entidades Requeridas, em defesa da legalidade e do interesse público, absterem-se e obstarem à sua alienação, usando dos poderes que efetivamente detêm para tal.

  15. Tal situação de ilegalidade em que se encontram as obras, assim como a prova por acordo das partes da sua titularidade no que respeita ao Estado Português, é suficiente para assegurar o preenchimento do requisito do “fumus boni juris” qualificado estabelecido na al. a) do n.º 1 do artigo 120º do CPTA e para excluir a ponderação dos critérios estabelecidos nas restantes alíneas e no n.º 2 do mesmo preceito (cfr. jurisprudência citada).

  16. Pelo que é manifesta a procedência da ação principal, sem necessidade de mais indagações, sendo certo que no respeita ao requisito do “fumus boni iuris”, ou aparência de bom direito, a sua apreciação é mais ténue quando se está na presença de uma providência cautelar conservatória que devia desde logo ter sido decretada com fundamento nesta norma, sem necessidade de mais indagações, e uma vez que é evidente a procedência da ação principal (cfr. jurisprudência citada).

  17. Mesmo que assim não se entendesse, e sem nada conceder, sempre se deve dar por preenchido o requisito do chamado fumus non malus iuris e o do periculum in mora, requisitos que comprovadamente ocorrem, pois que não...

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