Acórdão nº 0856/14 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 19 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelANA PAULA PORTELA
Data da Resolução19 de Março de 2015
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: O MUNICÍPIO DO SEIXAL interpôs o presente recurso do acórdão da Secção que julgou incompetente a jurisdição administrativa para conhecer do objecto dos autos, nos termos do art. 4º nº 2, al. a) do ETAF, e por isso, prejudicado o conhecimento do mérito da providência, em consequência do que absolveu da instância as entidades ora recorridas.

Para tanto a recorrente conclui as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões: “1ª O presente recurso é interposto do D. acórdão proferido em primeiro grau de jurisdição pela 1ª Secção de Contencioso Administrativo desse Venerando Supremo Tribunal, que declarou a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de suspensão da eficácia dos vários actos administrativos contidos no Decreto-Lei n.° 104/2014, de 2 de Julho de 2014, e absolveu da instância as entidades requeridas.

  1. O Município recorrente não se conforma com semelhante interpretação e aplicação do direito, desde logo, pela singularidade imputada ao “acto suspendendo”, uma vez que, o objecto do presente processo cautelar, não é um, mas todos e cada um dos actos jurídico-administrativos praticados no Decreto-Lei n.° 104/2014, de 2 de Julho de 2014.

  2. Salvo o devido respeito, que a decisão recorrida assenta num incorrecto pressuposto: considera que “o acto suspendendo” é o Decreto-Lei n.° 104/2014, de 2 de Julho, quando o objecto do processo são os diversos actos individuais e concretos contidos naquele Decreto-Lei.

  3. O presente processo visa impugnar os actos administrativos praticados sob a forma de lei, no citado Decreto-Lei, qualquer que seja o número de actos aí contidos e desde que se reconduzam à conformação individual e concreta de uma situação jurídica; se o Tribunal entender que apenas algumas das disposições do Decreto-Lei consubstanciam a prática de actos administrativos, então o processo deve versar sobre aquelas e não sobre as restantes disposições.

  4. Ao ter apreciado o pedido na perspectiva global de que o requerente questiona todos os artigos do DL n.° 104/2014 e ao tomar o todo pela parte, afirmando a improbabilidade de todo um Decreto-Lei se reconduzir à definição de acto administrativo, o Tribunal perfilhou um entendimento redutor, assente num juízo de valor meramente conclusivo, e absteve-se de aprofundar os fundamentos da impugnação requerida.

  5. A decisão recorrida deveria ter-se pronunciado individualmente sobre cada um dos actos impugnados, devidamente discriminados no requerimento inicial do processo, e caracterizar a sua natureza de acto administrativo ou legislativo; não o tendo feito, o Tribunal deu prevalência à forma sobre a substância e omitiu a pronúncia sobre as questões suscitadas no processo; salvo o devido respeito, desrespeitou-se a garantia da tutela jurisdicional efectiva, que não admite derrogações à impugnabilidade perante a jurisdição administrativa.

  6. O Tribunal nem sequer tomou em consideração que as disposições do Decreto-Lei n.° 104/2014, versam, por um lado, sobre algumas disposições do Decreto-Lei n.° 53/97, e, por outro lado, sobre algumas disposições dos estatutos da sociedade comercial A………….., SA; tratam-se de disposições com uma natureza distinta que até poderá, por princípio, justificar uma diferente interpretação e aplicação do direito em relação a cada um dos grupos daquelas disposições.

  7. Ao assentar a decisão recorrida num juízo de valor formalista, meramente conclusivo e não fundamentado individualmente em relação a cada um dos actos administrativos impugnados, tomando-os, ao invés, como um todo, e atribuindo a mesma natureza jurídica a todos eles, o Tribunal incorreu, salvo o devido respeito, em erro e omissão de pronúncia sobre as questões suscitadas no presente processo cautelar.

  8. Acrescenta-se a total omissão de pronúncia sobre as implicações e consequências da emissão da “resolução fundamentada” pela entidade requerida, junta aos autos para tentar obstar ao efeito suspensivo da apresentação do processo cautelar; o Tribunal nem sequer questionou a razão de ser de semelhante procedimento por parte da entidade recorrida, que tem necessariamente subjacente o reconhecimento da prática de actos administrativos no diploma legal em apreço, pois nada justificaria emitir uma resolução fundamentada se estivessem apenas em causa actos legislativos.

  9. Na decisão recorrida reconhece-se a possibilidade de, dentro dessa actividade legislativa, se ter anormalmente insinuado a prática de actos administrativos «proprio sensu», mas não são depois extraídas as devidas e necessárias implicações, isto é, a apreciação casuística em relação a cada uma das disposições do Decreto-Lei n.° 104/2014, quer as que alteram o Decreto-Lei n.° 53/97, quer as que alteram os estatutos da sociedade comercial A……………, SA, sobre se estão em causa actos administrativos, ou não.

  10. A tese perfilhada no acórdão recorrido tem subjacente uma consequência juridicamente inaceitável: em bom rigor, o Tribunal admite que se o Município recorrente tivesse apresentado uma providência cautelar de suspensão da eficácia contra cada uma das disposições do Decreto-Lei n.° 104/2014, imputando-lhes individualmente a natureza de actos administrativos, então já se debruçaria nessa multiplicidade de processos sobre o mérito de cada uma das impugnações, uma vez que já não ocorreria a “insistência em olhar-se todo um diploma legal”; ora, até por uma razão de economia processual, parece indefensável a tese recorrida que penaliza o Município recorrente pelo simples facto de ter impugnado globalmente, num único processo judicial, todos e cada um dos actos administrativos praticados no Decreto-Lei n.° 104/2014.

  11. As alterações introduzidas pelo DL n.° 104/2014, de 2 de Julho, ao DL n.° 53/97, de 4 de Março, versam sobre situações concretas do Governance e da vida interna da sociedade A.................., SA, por sua vez reflectidas e reproduzidas nos próprios estatutos da sociedade, pelo que, jamais se lhes poderá reconhecer a natureza de actos normativos; certamente, o meio idóneo para proceder a alterações sobre estas matérias não é através da emissão de actos legislativos, mas por deliberação da assembleia geral da sociedade.

  12. Não pode, assim, aceitar-se que se denegue o direito de impugnação judicial contra tais alterações às regras internas da sociedade A.................. a pretexto de terem sido “encaixadas” num decreto-lei emitido por um sócio da sociedade (o Estado, titular único da sócia B…………), furtando-se ao crivo da assembleia geral e das regras sobre quórum e maioria necessários para a tomada de deliberações.

  13. Quanto às alterações concreta e directamente introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 104/2014, de 2 de Julho, aos estatutos da A.................. cumpre, desde logo, tirar uma conclusão apodíctica: caso essas alterações dos estatutos da A.................. tivessem sido realizadas por acto legislativo, como se defende no acórdão recorrido, não careceriam de expressa consagração ulterior nos estatutos da sociedade aprovados em anexo ao DL n.° 53/97, de 4 de Março; a força jurídica que teriam enquanto lei, a sua aplicabilidade directa, geral e abstracta na ordem jurídica tornariam dispensável a necessidade da sua concretização nos próprios estatutos da A.................., como veio a suceder, por vontade de um dos sócios à revelia da participação dos restantes.

  14. A questão que se coloca com acuidade, e que o D. acórdão não apreciou, é a da necessidade do abuso da forma legislativa, para conseguir um resultado que propicia, ilegal e inconstitucionalmente, a modificação da legalidade vigente para a alteração dos estatutos; daqui resulta que a necessidade de proceder a alteração dos estatutos da A.................. advém, precisamente, do facto de não se tratarem de actos materialmente legislativos, mas de actos que só poderão determinar a vida interna da sociedade e vincular os sócios e os órgãos sociais depois de serem introduzidos nos estatutos da A..................; para tanto, nos termos da lei (do Código das Sociedades Comerciais e da redacção original do Decreto-Lei n.° 53/97, de 4 de Março), só podem alterar-se os estatutos da sociedade mediante deliberação da assembleia geral.

  15. Em consequência, os actos que foram praticados (no DL n.° 104/2014) em substituição das deliberações sociais que deveriam ter sido tomadas para consagrar as alterações aos estatutos da A.................. só podem revestir a natureza de actos administrativos praticado em diploma legislativo, pelo que a sua legalidade e constitucionalidade é sindicável pelos Tribunais.

  16. Ao contrário do referido no D. acórdão recorrido, nunca foi reconhecido o carácter legislativo dos actos praticados no DL n.° 53/97, de 4 de Março, nomeadamente enquanto “puro acto de soberania, do exercício de um poder livre e unilateral do Governo” a questão da natureza jurídica dos actos praticados no DL n.° 53/97, de 4 de Março, não foi invocada, nem sequer suscitada, no processo.

  17. Ainda que assim não fosse, não pode acompanhar-se o silogismo defendido na decisão recorrida no sentido de o “DL n.° 104/2014 seria um acto administrativo se o DL n.° 53/97 ao constituir a sociedade A.................. e aprovar os seus estatutos em anexo, também já contivesse um acto administrativo.”; pelo menos no que respeita às concretas alterações aos estatutos da A.................., jamais poderão ser consideradas como actos legislativos, mas deverão ser qualificadas como actos materialmente administrativos praticados em diploma legislativo, até pela simples razão de o próprio legislador do DL n.° 53/97, de 4 de Março, ter determinado que as alterações aos estatutos realizam-se nos termos da lei comercial e do disposto no artigo 18° dos estatutos da sociedade (art. 3°, n.° 3, revogado pelo DL n.° 104/2014).

  18. Se o próprio legislador vedou para futuro a forma legislativa para introduzir alterações aos estatutos...

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