Acórdão nº 813/10.5TBSCR.L1-7 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 10 de Fevereiro de 2015

Magistrado ResponsávelPIMENTEL MARCOS
Data da Resolução10 de Fevereiro de 2015
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa Relatório: “B…P” intentou a presente acção com processo sumário contra “NA..”, pedindo que:

  1. Seja reconhecida judicialmente a resolução do Contrato de Crédito junto como doc. 1; b) Seja reconhecida judicialmente a propriedade da Autora sobre o veículo automóvel marca…, modelo.., com a matrícula XT; c) Seja ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré sobre este veículo automóvel.

    Alegou para tanto, e em síntese, que, no âmbito da sua actividade, celebrou com a R., no dia 11-10-2006, o contrato de crédito ao consumo nº 301794, que teve por objecto o financiamento de € 24.306,86, com destino à aquisição do veículo automóvel marca.., modelo…, com a matrícula …XT; este veículo foi vendido com o encargo de reserva de propriedade a favor da A., que se encontra devidamente registada; por força do referido contrato, a Ré assumiu a obrigação de pagar à Autora uma prestação mensal no valor de € 602,16, por um período de 48 meses; a Ré não efectuou o pagamento das prestações 30, 31, 32, 33 e 34, no valor total de € 3.010,90.

    A Ré foi citada e não deduziu oposição.

    Por despacho de fls. 28 foram considerados confessados os factos articulados na petição inicial, e foi dado cumprimento ao disposto no art. 484º/2, ex vi do art. 463º/1 do CPC.

    Seguidamente foi proferida a decisão final com o dispositivo que se transcreve: «Com fundamento no atrás exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção, e, em consequência, decido:

  2. Reconhecer judicialmente a resolução do Contrato como doc. 1 à data de 27-01-2010; b) No mais, absolvo a Ré do restante pedido».

    Inconformada, apelou a autora, terminando as alegações em síntese conclusiva: 1.

    O artigo 409º do Código Civil, constituindo uma excepção à regra prevista no artigo 408º do mesmo diploma legal, tem como efeito suspender a transmissão do bem, permitindo ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador; 2.

    A verdade é que a reserva da propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objecto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem, ou seja, quando existe uma clara interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda.

    1. O próprio diploma legal que regula o crédito ao consumo (DL 359/91, de 21 de Setembro), prevê no número 3 do seu artigo 6º que “O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento de aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda: (…) f) O acordo sobre a reserva de propriedade”; 4.

      Neste sentido, e como tem sido defendido pela mais ampla e recente Jurisprudência, impõe-se uma interpretação actualista da Lei, designadamente do disposto no n.º 1 do artigo 18º do DL 54/75, de 12.02; 5.

      Do disposto no artigo 9º do Código Civil resulta que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas, devendo o intérprete atender à vontade do Legislador, tendo sobretudo em conta, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, as condições específicas do tempo em que é aplicada; 6.

      É firme entendimento da ora Recorrente, e assim tem sido admitido pela Jurisprudência, a admissibilidade da constituição da reserva da propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de financiamento cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço do bem ao alienante; 7.

      Com efeito, é na relação pagamento integral do preço da coisa vendida/ transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominni encontra a sua razão de ser; 8.

      Tal entendimento encontra acolhimento na própria Lei, a qual permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (cfr. artigo 409º, n.º 1, in fine); 9.

      Por outro lado, não se pode também olvidar, a este propósito, o princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405º do Código Civil; 10.

      Na verdade o comprador do veículo associa o pagamento do preço do bem ao cumprimento do contrato de financiamento (mediante o pagamento mensal da prestação), aceitando, por essa razão, que a garantia da reserva da propriedade seja constituída como garantia de cumprimento desse contrato; 11.

      Resulta claramente dos autos que a reserva da propriedade sobre o bem objecto dos mesmos foi constituída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, e não do contrato de compra e venda; 12.

      Por outro lado, sempre terá de ter presente que a própria Lei expressamente determina que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode subrogá-lo nos direitos do credor (cfr. artigo 591º do Código Civil), sendo que, de acordo com o disposto no artigo 582º do mesmo Diploma Legal, aplicável ex vi do artigo 594º, a sub-rogação importa a transmissão, para o sub-rogado, das garantias e acessórios do direito transmitido; 13.

      Atento o exposto, é de entender que a referência ao contrato de alienação contida no n.º 1 do artigo 18º do DL 54/75 é extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda; 14.

      O entendimento de que apenas o incumprimento e resolução do contrato de alienação determinariam a possibilidade de se requerer a apreensão do veículo alienado, acarretaria a inutilidade da cláusula de reserva da propriedade nos casos em que a aquisição do veículo é feita através de financiamento de terceiro, mostrar-se-ia destituída de cabimento legal a resolução do contrato por parte do alienante e, nessa medida, a possibilidade de executar a seu favor a cláusula de reserva da propriedade; 15.

      A não se entender assim, chegaríamos à situação absurda de, incumprido o contrato de mútuo e sendo vedado ao financiador invocar o incumprimento e resolução do contrato de mútuo como causa do accionamento da reserva da propriedade constituída a seu favor, o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que não é efectivamente proprietário, o que se traduziria num escandaloso e inaceitável efeito pernicioso que certamente os princípios subjacente ao nosso Ordenamento Jurídico rejeitam ou não podem mesmo deixar de rejeitar.

    2. O accionamento da reserva da propriedade pode, pois, ter lugar em consequência do incumprimento do contrato de financiamento, no âmbito do qual foi constituída; 17.

      Por outro lado, e fazendo uma interpretação...

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