Acórdão nº 108/14.1T8PTS.L1-1 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 20 de Junho de 2017

Magistrado ResponsávelEURICO REIS
Data da Resolução20 de Junho de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa: 1.

“... – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda.” e “... – Sociedade Hoteleira e Turismo, SA” intentaram contra o ESTADO PORTUGUÊS e a REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA a presente acção declarativa com processo comum que, sempre sob o n.º 108/14.5T8PTS, correu termos, sucessivamente, pelas, à data, Secção de Competência Genérica - J1 da Instância Local da comarca da Madeira/Ponta do Sol, e Secção Cível - J3 da Instância Central da comarca da Madeira/Funchal, e na qual pedem que seja “…reconhecida a propriedade 1ª Autora … (e) da 2ª Autora sobre as … parcelas de leitos ou margens das águas do mar …” identificadas na sua petição inicial conjunta (sic - fls. 20 e 21).

Cumprido o ritual processual legalmente fixado, foi, logo no despacho saneador e tendo antes sido dispensada a realização de audiência prévia, proferida a decisão com valor de sentença que ocupa fls. 310 a 316, cujo decreto judicial tem o seguinte teor: “Termos em que se julgam parte ilegítima para intervir nesta acção os réus Estado Português e Região Autónoma da Madeira e, consequentemente, absolvem-se os réus da instância.

Custas pelas autoras.

… Notifique. ...” (sic - fls. 315 a 316).

Inconformadas com essa decisão, as Autoras dela recorreram (fls. 318 verso), pedindo que seja julgado “… o presente recurso … totalmente procedente por provado e, em consequência, devem regressar os autos à primeira instância figurando como Réus o Estado e a Região Autónoma da Madeira” (sic - fls. 329 verso), rematando as suas alegações com as seguintes 39 conclusões: “A.

Com o presente recurso pretendem as Recorrentes que este Venerado Tribunal da Relação, julgando-o procedente, reconheça que (a) o Estado é parte legítima nas ações que têm como pedido o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas presumivelmente do domínio público e que (b) estando essas parcelas localizadas nos arquipélagos dos Açores ou da Madeira, são as respetivas regiões autónomas igualmente parte legítima.

B.

A decisão em crise considerou o Estado parte ilegítima na presente ação referindo que, de acordo com a “conceptualogia inerente à normatização da legitimidade, tal como foi configurada pelos autores, os réus Estado Português e Região Autónoma da Madeira não aparecem como sujeitos de tal relação e, por conseguinte, titulares de um interesse relevante para efeito de legitimidade passiva”.

C.

No entanto, esta conclusão não entronca nos fundamentos que são aduzidos na própria sentença: de acordo com a relação material controvertida tal como foi configurada pelas Autoras, o Estado tem um evidente interesse em contradizer porque é presumível titular das parcelas de terreno que aquelas entendem ser propriedade privada desde momento anterior a 1864.

D.

A decisão do tribunal a quo baseia-se apenas e só no disposto na norma do n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na redação dada pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, não tendo nada que ver com a forma como estas configuraram a relação material controvertida mas sim com a interpretação, aliás errada, que a sentença fez daquela norma.

E.

Assim, quando se diz que “aplicando diretamente o que acima ficou dito sobre a conceptualogia inerente à normatização da legitimidade, tal como foi configurada pelos autores, os réus Estado Português e Região Autónoma da Madeira não aparecem como sujeitos de tal relação e, por conseguinte, titulares de um interesse relevante para efeito de legitimidade passiva” a sentença em crise está a contradizer-se.

F. A sentença incorre no vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, sendo, consequentemente, nula.

G.

Por outro lado, a presente ação foi apresentada no âmbito da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, sendo que o domínio público marítimo pertence ao Estado (cfr. artigo 4.º).

H.

Considerando o disposto no artigo 4.º, é evidente que o réu dessa ação tem que ser forçosamente o Estado, pois é este quem é, presumivelmente, dono da parcela que um qualquer particular queira ver reconhecida como privada.

I.

É portanto o Estado quem tem interesse em contradizer estas ações, é o Estado que vê o seu património ficar diminuído caso a ação seja julgada procedente e, face à procedência da ação, o Ministério Público nada tem a fazer, não lhe competindo executar a sentença nem passar a atuar como se uma determinada parcela fosse privada.

J.

No mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, em 26 de setembro de 2011 (Processo n.º 3/08.7TBVCD-A.P1), que referiu que a relação controvertida em causa tinha como sujeitos os Autores e o Estado.

K.

Assim, uma leitura daquele artigo 15.º não pode nunca dispensar a coordenação com as demais normas do mesmo diploma, nomeadamente o mencionado artigo 4.º, pois o que a primeira norma referida define é quem tem competência para contestar – o Ministério Público – e não quem tem que ser demandado – inevitavelmente o Estado.

L.

A verdade é que há uma parte da norma a que não pode deixar de atender-se e que, além do erro acima apontado, pode ter induzido em erro o tribunal a quo: a contestação é competência do Ministério Público “quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais”.

M.

Ou seja, a norma só prevê a atuação especial do Ministério Público quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, pelo que a intervenção em nome próprio só se coloca em situações concretas e pontuais e não face a quaisquer ações de reconhecimento de propriedade privada.

N.

A não se entender assim, então aquela parte da disposição não tinha qualquer sentido útil, sendo que de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

O.

Na situação dos autos, não estão em causa interesses coletivos públicos, mas sim o interesse direto do Estado enquanto presumível proprietário das parcelas de terreno reclamadas pelas Autoras e ora Recorrentes.

P.

Não estando perante situações em que “interesses coletivos” estejam em causa, não cumpre ao Ministério Público, como entidade independente, ser demandado.

Q.

De resto, o entendimento do tribunal a quo não se encontra sufragado por qualquer decisão publicada do Supremo Tribunal de Justiça ou dos tribunais da relação.

R. Nestes termos, ao considerar que o Estado não era parte legítima, a sentença em crise interpretou erradamente o disposto no n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, vício que se alega para os efeitos do disposto no artigo 639.º do CPC.

S.

Como resulta do introito da petição inicial, as Autoras, ora Recorrentes, demandaram “O ESTADO, representado pelo Ministério Público nos termos do artigo 24.º do Código de Processo Civil (CPC) e do artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro”.

T.

Apesar de terem apontado o Estado como Réu, as Autoras desde logo indicaram que a sua representação cabia ao Ministério Público, pelo que só levando o formalismo a níveis inconcebíveis se pode considerar que as Autoras não envolveram o Ministério Público no litígio.

U.

A manter a tese de que o réu legítimo seria o Ministério Público, o que o tribunal a quo deveria ter feito era, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 590.º do CPC, ter proferido despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias.

V.

Não o tendo feito, a sentença em crise não deixou de constituir, além do mais, uma decisão surpresa.

W. Termos em que a sentença recorrida violou o dever de gestão processual na configuração do n.º 2 do artigo 6º e no n.º 2 do artigo 590º do CPC.

X.

Mas a decisão de considerar o Réu Estado como parte ilegítima viola ainda de forma grave o princípio pro actione.

Y.

Com efeito, o tribunal optou por julgar liminarmente uma parte como ilegítima – o Estado – atribuindo essa legitimidade a uma parte que já se encontrava no processo – o Ministério Público, embora por uma razão diferente.

Z.

Ainda que por caminhos pretensamente tortos, a verdade é que se chegou ao que o próprio tribunal entendeu como adequado: o Ministério Público intervir no processo podendo contestar a ação.

AA. Termos em que é manifesto que a decisão em crise viola de forma particularmente chocante o princípio pro actione furtando-se a uma decisão de mérito sem que se verifique qualquer razão para tal.

BB.

A decisão em crise considerou ainda a Região Autónoma da Madeira parte ilegítima na presente ação, mas, tal como se referiu no caso do Estado, a decisão não entronca nos fundamentos que são aduzidos sobre atender à legitimidade “tal como foi configurada pelos autores”.

CC.

Nos artigos 9° a 13° da petição inicial, as Autoras apresentaram os argumentos relativos à demanda dos Réus, delimitando devidamente os termos de intervenção da Região Autónoma da Madeira: quando não estão em causa bens afetos à defesa nacional, os bens do domínio público situados no arquipélago integram o domínio público da região.

DD.

Ora, de acordo com a relação material controvertida tal como é configurada pelas Autoras, a Região Autónoma da Madeira tem um evidente interesse em contradizer porque é presumível titular das parcelas de terreno que as Autoras entendem ser propriedade privada.

EE.

Mais uma vez, a decisão do tribunal a quo...

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