Acórdão nº 3/16.0PAPST.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 01 de Junho de 2017

Magistrado ResponsávelANTERO LU
Data da Resolução01 de Junho de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam, em conferência, os Juízes da 9@ Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório Na Comarca da Madeira, Instância Local de Competência Genérica de Porto Santo, por sentença de 15/01/2017, constante de fls. 271. a 279, foram os arguidos, S..., H..., Absolvidos da acusação contra si deduzida, nos seguintes termos: a) Absolver a arguida S..., da prática do crime de violência doméstica p.e.p. pelo art.21522 n21 a) e 4 do C.P. (e ainda que sob forma convolada para o tipo de ofensa à integridade física simples p.e.p. pelo art.21432 n21 do C.P., nos termos do art.21432 n22 do C.P. e 482, 492 do C.P.P.); Absolver o arguido H..., da prática do crime de violência doméstica p.e.p. pelo art.21522 n91 a) e 4 do C.P. (e ainda que sob forma convolada para o tipo de ofensa à integridade física simples p.e.p. pelo art.°1432 n°1 do C.P., nos termos do art.°143° n°2 do C.P. e 48°, 492 do C.P.P.).

* * * Não se conformando o Ministério Público interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 287 a 308, com as seguintes conclusões: (transcrição) 1) Na sentença proferida o tribunal a quo deu como provado, entre outros factos, que o arguido H..., no dia 22 de maio de 2016, pelas 15 horas e 15 minutos, iniciou uma discussão com a arguida S..., no interior da sua residência, a qual só terminou porque o arguido H... decidiu abandonar essa residência.

Mais resultou provado que nesse mesmo dia, pelas 2 horas e 10 minutos, na Avenida xxx, na ilha do Porto Santo, o arguido H..., movido por ciúmes, aproximou-se da arguida S..., que se encontrava no estabelecimento denominado "MO...", acompanhada do seu irmão, M…, e questionou-a sobre a razão da mesma se encontrar naquele local.

Mais resultou provado que, nessas circunstâncias, dirigiu-se a M… interrogando se aquele pretendia arranjar outro marido para a arguida, momento em que esta abandonou o local e se deslocou para o estabelecimento denominado “T...”, sito na Rua xxx, na ilha do Porto Santo.

Mais resultou provado que o arguido H... decidiu ir no encalce da arguida até esse estabelecimento e assim que a arguida S... se apercebeu disso, deslocou-se ao seu veículo automóvel que estava estacionado junto ao estabelecimento "MO..." e sentou-se no seu interior.

Resultou ainda provado que o arguido H... continuou no encalce da arguida Sónia, aproximou-se do veículo automóvel em que esta se encontrava, altura em que a arguida saiu do interior desse veículo e abordou o arguido.

Mais resultou provado que, sem que nada o fizesse prever, os arguidos agarraram-se e começaram a agredir-se mutuamente, acabando por ser projetados para o chão e que essas agressões só tiveram fim com a intervenção do irmão da arguida, de algumas pessoas que se encontravam no local e dos Agentes da PSP do Porto Santo que ali chegaram, os quais afastaram os arguidos entre si.

Resultou ainda provado que no percurso para o Centro de Saúde e no interior da viatura policial, o arguido disse várias vezes que iria cortar a arguida toda, fazendo o gesto com a mão junto ao seu pescoço, simulando que a ia degolar.

Mais sabiam os arguidos que ao agirem dessa forma e publicamente, causavam-se mutuamente, não só as lesões físicas descritas, como também um sentimento de desrespeito, desonra e humilhação, atentando contra as suas dignidades humanas e atuando com total indiferença para com os deveres de respeito e cooperação.

Os arguidos agiram, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos pela lei penal.

2) Apesar da objetiva gravidade e censurabilidade das condutas do arguido H... que foram consideradas como provadas na sentença recorrida, entendeu a Mma. Juíza, face à matéria de facto dada como provada que, os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em causa estariam preenchidos, contudo, o tribunal a quo concluiu que, resultando que houve agressões mútuas entre os cônjuges, arguidos, inexiste ascendente de qualquer um dos cônjuges sobre o outro, o que importa o afastamento do tipo legal de violência doméstica.

3) Analisandos os factos dados como provados nesta decisão, à luz do disposto na alínea a), do n.° 1, do artigo 152.°, do Código Penal, que tipifica o crime de violência doméstica que ao arguido H... vinha imputado na acusação, verifica-se que a sentença recorrida violou este imperativo legal ao estabelecer um patamar de exigência de preenchimento do conceito de violência doméstica a cônjuge completamente desajustada (por desvalorizar) do grau de exigência legalmente consagrado para o efeito, como resulta da interpretação sistemática desta norma, bem como do sentido da evolução legislativa verificada nesta matéria no nosso ordenamento jurídico-penal.

4) Salvo o devido respeito, a tese em apreço ofende o espírito e a letra do artigo 25.°, da Constituição da República Portuguesa, surgindo, nos dias de hoje como totalmente descabida.

5) Assim, a questão que se coloca, como objeto essencial deste recurso que apenas versa matéria de direito e apenas quanto à absolvição do arguido H..., é a da impossibilidade lógica-jurídica da interpretação dada à alínea a), do artigo 152.°, do Código Penal, nesta decisão do tribunal a quo, face ao conceito de violência doméstica consagrado no nosso ordenamento jurídico-penal, redundando uma flagrante violação do espírito e da letra daquela norma jurídica.

6) Assim, dispõe esse artigo que "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge"; (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.".

7) O crime de violência doméstica encontra-se inserido, na sistemática do Código Penal, no Capítulo III (Crimes contra a Integridade Física), do Título I (Crimes contra a pessoa), da Parte Especial do Código.

8) Com efeito, o referido crime é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.

9) No que concerne ao bem jurídico tutelado pela incriminação, a ratio do artigo 152.°, do Código Penal, não está "na proteção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana", indo muito mais além "dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos, designadamente, as humilhações, provocações, ameaças, ou curtas privações de liberdade de movimentos.

10) O bem jurídico protegido, pela incriminação é a saúde, bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, neste sentido, ainda sobre a redacção anterior do preceito, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 132.

O tipo legal de crime de violência doméstica visa proteger a pessoa individual e a sua dignidade humana.

11) A incriminação contribui desta forma e em uníssono, com outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.° 1, do artigo 25.°, da Constituição da República Portuguesa, em integridade moral e física.

12) O tipo objetivo da incriminação inclui, além das condutas de "violência" física, a "violência" psicológica, verbal e sexual, que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

13) Ora, no caso vertente, o arguido H... é marido da arguida S..., residindo ambos na mesma habitação e perante o conjunto fáctico apurado, não restam dúvidas que o arguido H... com a sua conduta preencheu, praticou os factos de que vinha acusado.

14) Desde logo, porque o arguido sujeitou a sua esposa a humilhações públicas, para além de situações de violência física, ofendendo a sua dignidade, enquanto ser humano, violando o seu direito à saúde psíquica e mental.

15) O arguido, com a sua conduta, ofensiva de vários direitos da ofendida, demonstrou não ter o mínimo de respeito pela mesma, até porque a ofendida sendo sua esposa, lhe merece todo o respeito.

16) A Mma. Juíza a quo restringiu a sua valoração dos factos, única e exclusivamente, às agressões mútuas existentes entre os arguidos e desvalorizou a perseguição pertinaz que o arguido fez à arguida e a consequente humilhação pública.

17) Segundo os factos dados como provados e aos quais já se fez referência, o arguido H... perseguiu a arguida S..., primeiro até ao estabelecimento denominado "MO...", abordando-a nesse local, depois até ao estabelecimento denominado “T...”, abordando-a nesse local, pela segunda vez, e, após, até ao veículo da mesma, abordando-a pela terceira vez, revelando com o seu comportamento, não só a perseguição, mas o controle da vida da arguida, limitando a sua liberdade de ação.

O arguido agiu movido por ciúmes, tendo até questionado o irmão da arguida S..., se aquele pretendia arranjar marido para ela....

18) Salvo o devido respeito, a Mm.a Juíza a quo desvalorizou totalmente esta conduta do arguido, a qual, a nosso ver, revela um tratamento incompatível com a dignidade e liberdade da arguida S....

19) Sufragar a tese da sentença recorrida redundaria, assim, em manifesta e inadmissível desvalorização de princípios fundamentais do ser humano, tais como a liberdade de ação e decisão.

20) Na verdade, desvalorizar a perseguição constante de um cônjuge relativamente ao outro, humilhá-lo publicamente, ameaçar de morte é atentatório à dignidade da arguida S....

21) De salientar que todos os factos integrantes do ilícito foram perpetrados pelo arguido H... com dolo direto, tendo este agido sempre com a intenção de atingir a saúde física e psíquica da ofendida e atuado de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei - vd. n.° 1, do artigo 14.°, do Código Penal.

22) Pelo que e em conclusão, em face da...

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