Acórdão nº 117/14.4T8VLS.L1-7 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 10 de Janeiro de 2017

Magistrado ResponsávelMARIA AM
Data da Resolução10 de Janeiro de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

Apelante/A.: MAS.

Apelados/RR.: ABA e MAB.

I.

Relatório: 1.-Pretensão sob recurso: revogação da decisão recorrida, devendo, em consequência, proferir-se outra que decida pela não caducidade do direito da A. e, bem assim, pelo seu interesse em agir.

1.1.-Pedido: a A.

pede que seja declarado que os RR. não são proprietários dos imóveis relacionados nos autos; ser decretado o cancelamento da inscrição a favor do R. marido – AP. … que incide sobre o prédio descrito sob o n.º … …; ser decretado o cancelamento das demais inscrições matriciais em nome do R. marido.

Os Réus contestaram, alegando, em síntese, que se julgue procedente a excepção de caducidade e que: o direito de aceitar a herança caduca volvidos que sejam 10 anos sobre o conhecimento do sucessível chamado à herança, sendo que, a A. foi instituída herdeira da quota disponível no dia 13/12/1980, logo, o direito de aceitar a herança já há muito está caducado; o R. marido desconhecia que o seu pai – JAB – havia feito um testamento, só tomando conhecimento do mesmo em Fevereiro de 2014, aquando da sua nomeação para exercer funções de cabeça de casal; os RR., desde 15 de Dezembro de 1980, fruíram de todas as utilidades dos prédios que eram do seu pai, com inclusão do agora reivindicado pela A., sem interrupção, oposição, não prejudicando terceiros, e exerciam um direito próprio; a A. durante todo este tempo nunca deu conhecimento aos RR. de que tais prédios faziam parte de qualquer herança aberta por óbito do pai do R. marido. Pediram, ainda, a condenação da A. como litigante de má-fé.

A A.

replicou, pugnando pela improcedência da excepção e pela procedência da acção.

Foi proferida decisão do seguinte teor: ” Em face do exposto e das normas legais supra citadas, decide-se: 1.-Julgar a presente acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolver os Réus de todos os pedidos formulados; 2.-Julgar totalmente improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má-fé, e, em consequência, absolvê-la de tal pedido.

Custas a cargo da Autora nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º, do Código de Processo Civil.

Custas relativas ao incidente de litigância de má-fé a cargo dos RR. (art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCP).

Registe e notifique.

Tal como requerido, atendendo ao teor dos factos constantes dos pontos 35, 36, 37, 38, 39, 40 41, 42 e 43 dados como provados e podendo os mesmos consubstanciar a prática de ilícito criminal, extraia certidão da presente sentença e remeta ao MP para os fins tidos por convenientes ”.

1.2.-Inconformada com aquela decisão, a A. apelou, tendo formulado as seguintes conclusões: 1.-O tribunal a quo, depois de dar por provado que o autor da herança faleceu há mais de trinta anos e fez testamento a favor de seus três sobrinhos, é nosso entendimento, salvo o devido respeito, que errou ao subsumir os factos ao Direito, aplicando o n.º 1 do art.º 2059.º do Código Civil.

  1. -Isto é, decidindo que a Autora, aqui Recorrente, perdeu o seu direito à herança testamentária por ter caducado o prazo de dez anos para aceitar tal herança.

  2. -Deveria, sim, ter aplicado a alínea e) do art.º 2317.º do CC, que determina que as disposições testamentárias caducam somente por repúdio.

  3. -In casu, não se verificou o repúdio por parte da Recorrente, pelo que o seu direito à herança não caducou.

  4. -Nestes termos, a decisão recorrida não teve em conta as regras inseridas no Capítulo II, do Título I, do Livro I, do Código Civil (Vigência, interpretação e aplicação das leis).

  5. -Nomeadamente o estipulado no n.º 3 do seu art.º 7.º, permitindo, assim, que uma regra geral revogue uma regra especial.

  6. -Nem o comando previsto no n.º 1 do seu art.º 9.º que impõe que o intérprete deverá ter em conta sobretudo a unidade do sistema jurídico. Com efeito, 8.-O n.º 3 do art.º 7.º do Código Civil, inserido no Livro I, Título I, Capítulo II (Vigência, interpretação e aplicação das leis) vem estatuir, na sua 1.ª parte, que “A lei geral não revoga a lei especial (…)”. Lido a contrario sensu: a lei especial revoga a lei geral.

  7. -A sua parte final, abre uma exceção àquela regra, ao determinar que “(…) excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.” (sublinhado nosso).

  8. -A expressão “inequívoca” não pode ser lida ligeiramente.

  9. -Auxiliemo-nos do Dicionário: “equívoco”, in “Dicionário Priberam da Língua Portuguesa”, significa: segundo sentido que transparece através do sentido literal em que parece empregar-se qualquer termo = trocadilho; interpretação errada de algo, engano não propositado, mal-entendido.

  10. -Já “inequívoco” significa: muito claro; não equívoco; evidente.

  11. -Para cumprir esta regra, isto é, para que a lei especial não revogue a lei geral, é necessário que o legislador o diga clara e objetivamente.

  12. -Os comentários àquele n.º 3 do art.º 7.º do CC, no “Código Civil Anotado” – 16.ª Edição – Janeiro de 2009, de Abílio Neto, são bem claros: «- 8.

    “(…) o problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei (…) anterior (Vaz Serra, RLJ, 99.º+-334); na fixação dessa intenção, dada a palavra “inequívoca” deve o intérprete ser particularmente exigente (O Ascensão, O Direito, pag. 259).” (Sublinhado nosso). - 9. “Teoricamente, é admissível que um diploma de carácter geral revogue outro especial: posto é, que seja essa a intenção inequívoca.” (Sublinhado nosso). - 13. “A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos em um conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, pelo que, quando se pretenda, através de uma lei geral, revogar leis especiais (…) há que dizê-lo, recorrendo à revogação expressa, ou, no mínimo, a uma menção revogatória clara, do género “são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais” (Menezes Cordeiro, “Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias”, em “Cadernos de Ciência de Legislação”, INA, n.º 7, 1993, pag.s 17 e ss.).» (Sublinhado nosso).

  13. -Para expressar inequivocamente a sua vontade, o legislador do Código Civil, inúmeras vezes, usou expressões tais como: - art.º 2028.º/2: “(…) sem prejuízo no disposto no n.º 2 do artigo 946.º.”; - art.º 2041.º/2-c): “A representação não se verifica: (…)”; - art.º 2049.º/3: “(…) sem prejuízo do disposto no artigo 2067.º (…).”; - art.º 2064.º/2: “(…) salvo o disposto no artigo 2055.º.”; - art.º 2094.º: “(…) sem prejuízo do disposto no artigo 2333.º (…)”; - art.º 2137.º/2: “(…) sem prejuízo do disposto no art.º 2143.

    º”.

  14. -Umas vezes o legislador é taxativo. É o caso, por exemplo, da incapacidade por indignidade (art.º 2034.º). São aqueles casos e mais nenhuns.

  15. -Quando o legislador não pretende ser taxativo, para deixar a “porta aberta” a outros factos, usa expressões, tais como: “nomeadamente”, “designadamente”, “além de outros casos”.

  16. -É evidente que o n.º 2 do art.º 2055.º do CC não se aplica ao caso sub judice.

  17. -Porém, foi chamado à colação porque é elucidativo da vontade do legislador quanto à aplicação da regra especial estatuída na alínea e) do art.º 2317.º do CC.

  18. -Uma vez que, na interpretação da lei, tem que se observar os comandos contidos no n.º 1 do art.º 9.º do CC, impondo-se ao intérprete que não se cinja à sua letra, antes reconstitua o pensamento legislativo a partir do texto legal, tendo “(…) sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)”. (Sublinhado nosso).

  19. -Ou seja, não se pode aplicar uma regra para o herdeiro que é simultaneamente herdeiro legitimário e herdeiro testamentário, em que só perde o direito à herança testamentária por repúdio.

  20. -E aplicar outra regra para quem é somente herdeiro testamentário em que, no dizer do Tribunal recorrido, perde o seu direito por inação da aceitação da herança.

  21. -Naquele n.º 2 do art.º 2055.º do CC, o legislador vem estabelecer que quando o herdeiro legitimário é também chamado à sucessão por testamento, se não o pretender aceitar, pode repudiá-lo.

  22. -Sendo a única forma de não-aceitação do testamento.

  23. -E não há dúvida que, no Livro V do CC, o Titulo I é a regra geral e o Título IV é a regra especial.

  24. -Sendo certo que aquele Título I somente se refere ao testamento no n.º 2 do referido art.º 2055, justificado por ser o herdeiro testamentário também herdeiro legitimário.

  25. -Trazendo para este Título I a estatuição especial da alínea e) do art.º 2317.º, do Título IV.

  26. -Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Proc.º n.º 06A719, de 18-04-2006, relator Sebastião Póvoas, que determinou que ”(…) a quota disponível pode ser recusada mas apenas através de repúdio, que não por inacção quanto à aceitação.” (Sublinhado nosso).

  27. -Ora, utilizando o elemento sistemático e a regra basilar da interpretação do Direito que “a regra especial revoga a regra geral”, ter-se-á que aqui aplicar aquela alínea e) do art.º 2317.º, a regra especial.

  28. -Aliás, o legislador ao inserir esta alínea e) do art.º 2317.º no Título IV (a regra especial) pretendeu criar um regime especial para a caducidade dos testamentos, ou não teria...

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