Acórdão nº 1519/14.1TTLSB.L1-4 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 03 de Maio de 2017

Magistrado ResponsávelALBERTINA PEREIRA
Data da Resolução03 de Maio de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.

  1. –Relatório: 1.1.

    -AAA, residente em Lisboa, veio intentar a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra BBB, EPE, com sede em Lisboa, pedindo seja declarada a validade do contrato de trabalhado celebrado entre as partes, bem como o despedimento ilícito de que foi alvo, e a R condenada a reintegra-lo ou pagar-lhe a correspondente indemnização, bem como as quantias de € 67.810,07, € 1.870,00 e € 200.000,00, respectivamente a título de retribuições vencidas, danos patrimoniais e danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal.

    Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância dos legais formalismos, onde o A optou pela indemnização em substituição da reintegração, culminando na fixação da matéria de facto.

    Proferida sentença foi a acção julgada: “parcialmente procedente, por provada em parte, e em consequência declaramos ser válido o contrato de trabalho celebrado entre A e R, bem como a ilicitude do despedimento do primeiro pela segunda, condenando esta a pagar-lhes: a)-a indemnização respectiva, no montante de € 62.604,85; b)-todas as retribuições vencidas desde 14 de Abril de 20142 e vincendas até trânsito em julgado desta sentença, por referência à retribuição mensal de € 5.552,70, absolvendo a R do demais peticionado. Sobre aquelas importâncias serão devidos juros de mora, vencidos desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.” 1.2.

    -Inconformado com esta decisão dela recorreu a ré de apelação, a processar como de revista, nos termos do art.º 678.º n.º 3 do Código de Processo Civil, tendo concluindo as suas alegações de recurso do seguinte modo: A.–Não está em causa a importação, sem mais, do regime do Código das Sociedades Comerciais mas, exclusivamente, o que dele é subsidiariamente aplicável às especiais circunstâncias de casos pontuais, o que é perfeitamente admissível, e mesmo necessário, à boa decisão no caso dos autos, porém, tal não entendeu a 1.ª Instância.

    B.–A sentença em recurso veio aderir ao entendimento sustentado pelo A., ora Recorrido, ao declarar que se a celebração do contrato de trabalho em questão não se encontrava expressamente proibida ao momento da sua outorga é porque lhe era permitida; C.–E como o regime das incompatibilidades consagrado no Estatuto do Gestor Público, na versão constante do Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de Março, também não o proíba expressamente, então continuaria a ser permitido; D.–Sendo que, como tal proibição acabou expressamente consagrada no texto daquele Estatuto, na revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 8/2012, de 18 de Janeiro, mais reforçou o tribunal a quo a convicção que a celebração do contrato de trabalho sub iudice era permitida.

    E.–Perante a natureza pública das normas que vêm regendo e solidificando o Estatuto do Gestor Público, inicialmente já presente no Decreto-Lei n.º 464/82, de 9 de Dezembro (cuja aplicação entretanto se manteve, muito em especial dos artigo 8.º e 11.º, ressalvada por força do artigo 38.º, do Decreto-Lei n.º 558/99, de17 de Dezembro, que estabeleceu o regime jurídico do sector empresarial do Estado e das empresas públicas), não é admissível, sem mais, a interpretação propugnada por esse tribunal; F.–Pois, por força do princípio da legalidade, orientador de toda a interpretação e aplicação das normas de Direito Público, o que não seja proibido não significa que seja permitido, ao contrário do que é a regra no âmbito do Direito Privado.

    G.–Não é possível olvidar que os referidos complexos normativos são pautados por vincado interesse de ordem pública que os reveste de carácter imperativo, cujo acatamento não se basta com um cumprimento formal das suas disposições jurídicas, conseguindo de tal modo que as efectivas valorações materiais e os valores subjectivos em presença sejam, de tal modo, postergados em detrimento da primazia que deve assistir à materialidade que lhe é subjacente.

    H.–Em 16 de Dezembro de 2004 foi formalizada a celebração desse contrato de trabalho entre a empresa, ora Recorrente, e o ora Recorrido (cfr. doc. n.º 4, junto à petição inicial, doravante, p.i.), ou seja, ainda na vigência da primeira versão do Estatuto do Gestor Público, conforme indicado no ponto 11 acima.

    I.–Em 6 de Abril de 2009, foi celebrado entre a …, S.A., a ora R. e o ora A., o instrumento contratual denominado “ACORDO”, nos termos e para os efeitos do n.º 2, do artigo 17.º, do Decreto-Lei n.º 71/2007, visando a cedência ocasional daquele trabalhador pela R. à … (cfr. doc. n.º 5, junto à p.i.); J.–Em 28 de Setembro de 2012, foi celebrado entre a …, S.A.; o …, E.P.E.; a ora R. e o ora A., um novo “ACORDO”, nos termos e para os efeitos do n.º 2, do artigo 17.º, do Decreto-Lei n.º 71/2007, visando a cedência ocasional daquele trabalhador pela R. à … e ao … (cfr. doc. n.º 6, junto à p.i.); K.–Resulta da interpretação dos termos do referido contrato de trabalho, nomeadamente, da sua Cláusula Nona, como reconheceu o tribunal a quo, que as partes lhe apuseram um termo inicial ou suspensivo, sujeitando a produção dos seus efeitos ao momento em que se verificar “... o termo do exercício das funções de Administração que o 2.º Outorgante actualmente desempenha na …, SA., ou de outras que consecutivamente venha a desempenhar e que legalmente tenham o mesmo efeito.”.

    L.–Todavia, entendemos que tal efeito não se pode verificar, em virtude daquele “contrato de trabalho” padecer do vício nulidade pelo facto do ora A., à altura da sua celebração, estar a desempenhar funções de administrador na …, S.A..

    M.–Conforme dispõe o artigo 398.º n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais “Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.” (sublinhado nosso).

    N.–Tendo o contrato em questão sido celebrado à revelia do espírito das normas acima, que o encaminham ao encontro dessa expressa proibição legal é, desde logo, nulo por força do artigo 280.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil.

    O.–A esta conclusão obriga a observância dos princípios gerais de boas práticas de “corporate governance” que, para o caso, relevam por preencherem a cláusula geral que o legislador consagra como sendo os “bons constumes” atendíveis para o efeito no n.º 2, desse artigo 280.º.

    P.–Bem como a observância da ordem pública, face à natureza publicista que acompanha a conduta do A., ora Recorrido, enquanto detentor da qualidade de gestor público.

    Q.–A esta conclusão não pode obstar o facto de entre a …, S.A. e a ora R. não existir uma pura relação de domínio ou de grupo, como literalmente caracterizadas no Código das Sociedades Comerciais.

    R.–Ambas as empresas eram (e são) tidas como empresas públicas, nos termos e para os efeitos do regime jurídico do sector empresarial do estado e empresas públicas (Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro), operando no mesmo sector de actividade, sujeitas a uma mesma tutela (apesar de não apresentarem uma direcção comum), assemelhando-se na materialidade do seu quotidiano a um grupo de empresas.

    S.–É o próprio diploma que ao estabelecer o regime jurídico do sector empresarial do estado que invoca ao longo do seu articulado a necessidade da aplicação do Código das Sociedades Comerciais quando, nomeadamente, refere que: “... as empresas públicas regem-se pelo direito privado ...”, “... as empresas participadas estão permanentemente sujeitas ao regime jurídico comercial, laboral e fiscal ...”, “A administração e a fiscalização das entidades públicas empresariais devem estruturar-se segundo as modalidades e com as designações previstas para as sociedades anónimas” e “Os órgãos de administração e fiscalização têm as competências genéricas previstas na lei comercial (...)” (vide, respectivamente, o n.º 1 e n.º 3, do artigo 7.º e o n.º 1 e n.º 2, do artigo 27.º).

    T.–Propósito expresso e vincadamente assumido no seu preâmbulo, ao declarar a vontade das diversas entidades que integram o sector empresarial do Estado e que deixaram de estar submetidas à lei de bases das empresas públicas para passarem “... a actuar de harmonia com as regras normais do direito societário. Essa é, aliás, a linha essencial do presente diploma, que consagra o direito privado como o direito aplicável por excelência a toda a actividade empresarial, seja ela pública ou privada.” (sic).

    U.–Não seria curial entender-se que a aplicação do regime do Código das Sociedades Comerciais estaria afastado precisamente neste ponto onde, aliás, adquire uma maior relevância pela necessidade da maior transparência que emerge da natureza pública das entidades envolvidas (e dos deveres de lealdade, rigor e isenção que incidem sobre os gestores públicos), razão pela qual impetra colher para o caso a aplicação do artigo 398.º daquele código, por via da sua interpretação extensiva (vide o teor do estudo referido no ponto 28 acima).

    V.–Dever de transparência que à altura da celebração desse contrato de trabalho era plenamente exigível por força da ressalva do artigo 39.º, do Decreto-Lei 558/99, ao manter no sector empresarial do Estado plenamente aplicável a este respeito as normas dos artigos 8.º, n.º 2 e 11.º, n.º 1, do Estatuto do Gestor Público na versão do Decreto-Lei n.º 464/82.

    W.–Esse propósito nesta especial matéria acabou por ser erigido em letra de lei pelos artigos 22, n.º 6, e 40.º, do Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de Março, ao estabelecer o novo Estatuto do Gestor Público subsequente à transformação ocorrida no sector empresarial do Estado.

    X.–Em reforço deste entendimento, veja-se que a preocupação de decalque do regime societário foi nesta parte especialmente assumida na...

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