Acórdão nº 991/14.4T8VIS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 03 de Novembro de 2015
Magistrado Responsável | ALEXANDRE REIS |
Data da Resolução | 03 de Novembro de 2015 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra: A...
e outros, em 2/5/2000, intentaram a presente acção contra o Estado Português, pedindo a condenação deste a pagar a cada um deles uma indemnização correspondente ao valor à data da condenação dos danos que disseram ter sofrido em consequência da actuação do R. no âmbito do processo de descolonização do ex-Estado Português de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar. Os autores concretizaram essa alegação, afirmando, ainda, muito em síntese: - Na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, a opção do R. plasmada na Lei nº 7/74 de 27/7 pela descolonização, reconhecendo o direito à independência das que eram então as suas províncias ultramarinas, foi legítima, particularmente por corresponder a um dever jurídico internacional decorrente de Resoluções da ONU.
- Porém, na sequência dos acordos de Alvor, que previam a presença tripartida da FNLA, do MPLA e da UNITA nos governos de transição, e, em parte, devido à falta de isenção e de capacidade de afirmação das forças portuguesas no território de Angola, gerou-se aí um clima de insurreição e guerra civil, tendo o R. tomado a decisão política, sem consultar as populações, de entregar ao MPLA esse território, que até 1974 se encontrava sob o controlo militar do exército português, colocando-o sob a esfera de influência do Estado imperialista da então URSS. Acresce que o R. não fez incluir nos referidos acordos qualquer cláusula eficaz de protecção às vidas e bens dos portugueses lá residentes.
- O R., por opção política, não por falta de meios, declaradamente renunciou a assegurar a ordem no território de Angola, as suas tropas descuraram o dever que a Constituição de 1933 lhe atribuía de preservar as pessoas e bens nos territórios ultramarinos sob administração portuguesa, assim como cooperaram, designadamente na prática de actos de genocídio, com o MPLA, que assaltou, incendiou e pilhou propriedade de residentes de todas as raças e credos religiosos, torturou, manteve em cativeiro, molestou sexualmente e assassinou um número indeterminado de pessoas no território de Angola, assim fomentando, tal como as demais forças insurrectas, um clima de ódio e vindicta de que foram alvo especialmente os angolanos de origem portuguesa.
- Esse contexto convenceu os AA da necessidade de abandonarem o território, para salvarem as suas vidas, resultando do seu êxodo, planeado (DL 23/75 de 22/1) e implementado pelo R., o abandono de todos os seus bens.
- O R., apesar de ter procedido, em 11/11/1975, à transferência de poderes para o MPLA, não reconheceu, de imediato, o Estado de Angola, impedindo os AA de gozar de protecção diplomática, nem reagiu por essa via ao confisco de bens efectuado pelo referido Estado, apesar das boas relações e dos vários protocolos subsequentemente acordados entre ambos os estados.
Afirmando que o valor material dos seus bens foi dissipado ainda durante o governo do território pelo R., os AA concluíram: 1º) a descrita actuação do R constituiu um facto ilícito continuado, consistente numa «limitação ilícita de facto do conteúdo do direito de propriedade» dos AA, que, não tendo cessado, impede o início da contagem do prazo de prescrição; 2º) o R. reconheceu expressamente a sua responsabilidade correspondente ao direito exercido nesta acção, renunciando à prescrição, através dos anúncios (convites) para que os ex-residentes em Angola elaborassem listas dos bens perdidos, da Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92 de 16/4/1992 (in DR I-B de 16/5/1992), que criou o Gabinete de Apoio aos Espoliados (extinto em 1997) e da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento do Estado para 1998); 3º) com o art. 40º da Lei 80/77 – norma que, apesar de inconstitucional, se manteve –, o R. criou dolosamente a aparência jurídica de que tal direito não existia ou era ineficaz face a ele, não podendo ser exercido, sendo que o prazo prescricional só começa a correr quando o titular puder fazer valer o seu direito.
O R Estado contestou, defendendo que o decurso do prazo de três anos previsto no art. 498º nº 1 CC extinguiu por prescrição o direito a que os AA se arrogam, fundado em factos, necessariamente, ocorridos nos anos de 1975 e 1976, porquanto foi nesse período que os AA terão sido forçados a abandonar os seus bens no território angolano, cuja independência foi proclamada em 11/11/1975 e reconhecida pelo Estado Português em 22/2/1976.
Na réplica, os AA sustentaram a improcedência da excepção de prescrição, renovando os argumentos já aduzidos.
Por despacho de 8/3/2010, o Sr. Juiz julgou habilitados e partes legítimas para a acção vários requerentes, enquanto sucessores de primitivos autores.
Inconformado com tal decisão, o R. interpôs recurso – que veio a ser admitido como agravo, a subir com o primeiro que, depois dele, subisse de imediato e com efeito meramente devolutivo (artigos 685º nº 1, 678º nº 1 e 680º nº 1, todos do CPC na redacção anterior à então vigente) –, suscitando a questão de saber se os incidentes de habilitação deveriam ter sido promovidos não apenas contra o R. mas também contra os demais AA. sobrevivos, porque coligados na acção com os falecidos.
No saneador sentença, o Sr. Juiz, julgando procedente a invocada excepção da prescrição e, por consequência, improcedente a acção, absolveu o R do pedido.
Inconformados, os AA. A... e outros interpuseram recurso, cujo objecto delimitaram com a questão da improcedência da prescrição, aduzindo os seguintes argumentos: 1. - o R omitiu o dever de agir relativamente aos bens dos portugueses deixados em Angola, nomeadamente por não ter agido como o fez relativamente aos bens dos portugueses deixados no Zaire ou como agiram todos os países europeus com situações semelhantes; 2. - o direito que os AA exercem está subtraído ao regime prescricional porque: - se trata de um direito fundamental conferido pelo art. 22º da Constituição; - terá de valer para os AA, vítimas de actos de violência sobre população não beligerante, motivados por ódio racial e crimes de guerra, a regra da imprescritibilidade que o R. reconheceu às famílias dos judeus vítimas do holocausto nazi e acolhida no art. 8º da Constituição quanto a crimes contra a Humanidade, de acordo com as regras do Direito Internacional; 3. - não deve ter-se por iniciada a contagem do prazo prescricional, porque são continuados e ainda não cessaram alguns dos factos geradores da responsabilidade do R. e o R., através do art. 40º da Lei 80/77 de 26/10 – que se mantém, apesar da sua inconstitucionalidade, que deve ser declarada – criou a aparência jurídica de que o direito a que os AA se arrogam inexistia ou ao menos seria ineficaz e não poderia ser exercido (art. 306º do CC); - ainda que se considerasse iniciado o prazo prescricional, o mesmo foi suspenso porque o R. publicou essa Lei 80/77 e anúncios pedindo aos ex-residentes em Angola que elaborassem listas dos bens ali deixados, para assim evitar que os AA propusessem acções judiciais, agindo, pois, com dolo indirecto; 4. - o R. reconheceu o direito ora exercido pelos AA., renunciando ao benefício da prescrição, através do art. 56º da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento Geral do Estado para 1998), da criação do Gabinete de Apoio aos Espoliados (Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92) e do ofício de 6.1.1993 do Chefe de Gabinete do Secretário de Estado para a Cooperação; 5. - a invocação da prescrição pelo R. constitui um abuso de direito, por ser contrária à boa fé e aos bons costumes (referindo-se de novo a Lei 80/77 e os anúncios), estando também o Ministério Público impedido de a invocar por estar obrigado a defender a legalidade democrática.
Importa apreciar as questões enunciadas e decidir, para o que relevam os elementos fácticos que se retiram do antecedente relatório.
Embora, em princípio, devessem ser julgados pela ordem da respectiva interposição a apelação e o agravo que com ela subiu, o certo é que este último só será apreciado se a decisão recorrida não for confirmada (cf. art. 710º do CPC, na redacção disciplinadora do recurso de agravo em apreço, anterior ao DL 303/2007 de 24/8).
Assim, começaremos por conhecer da questão suscitada na apelação, em cuja abordagem, necessariamente, se tratará de averiguar se, perante a matéria factual alegada pelos AA, os autos contêm já os elementos bastantes para uma sua decisão conscienciosa, contrariamente ao objectado no recurso.
-
Enquadramento geral.
Neste recurso apenas se suscita a questão da excepção de prescrição ([1]), pelo que, como decorre do art. 608º nº 2 (conjugado com art. 663º nº 2) do CPC, o reconhecimento da procedência dessa excepção, a verificar-se, «prejudica a consideração, sequer, da efectiva existência do direito arguido, da qual, portanto, não há que cuidar se efectivamente procedente aquela excepção» ([2]). Ainda assim, importará fazer uma breve averiguação, não sobre o respectivo mérito, mas sobre o modo como os AA estruturaram a sua pretensão, cujo resultado haverá de estar sempre presente na análise de cada um dos diversos argumentos dos apelantes.
Em primeiro lugar convém começar por recordar que o pedido formulado na acção contra o R. Estado é, tão-só, o de que este repare o valor dos danos alegadamente sofridos por cada um dos AA. em consequência da actuação do demandado no âmbito do processo de descolonização do ex-Estado Português de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar. Contrariamente ao que parece ser agora sugerido no recurso, não consta do pedido formalmente deduzido a pretensão, apenas invocada como argumento (artigo 332º da PI), de que, na presente acção, o R. seja condenado a agir, como fez, então voluntariamente, no...
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