Acórdão nº 61/14.5TBPNC.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 20 de Janeiro de 2015

Magistrado ResponsávelMARIA JO
Data da Resolução20 de Janeiro de 2015
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO A (…) intenta o presente procedimento cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova contra Águas (…), S.A.

, alegando, em síntese, que, tendo constatado que a requerida andava a realizar trabalhos de escavação no meio do prédio do requerente, alegadamente numa conduta de abastecimento de água que servia para abastecer a localidade de Quintas da Torre, a mulher do requerente deu ao encarregado da obra ordem verbal de embargo extrajudicial da obra.

A requerida deduziu oposição, invocando, além do mais, a incompetência do tribunal, porquanto, sendo uma empresa pública, concessionária da exploração e gestão do sistema multimunicipal de captação relativa a vários municípios, e encontrando-se em causa a sua atuação no âmbito da realização de uma obra pública, a entidade competente para dirimir o presente litígio é o tribunal administrativo.

O requerente respondeu no sentido da improcedência de tal exceção, alegando que o art. 414º do CPC apenas afasta o procedimento de embargo de obra nova previsto nos arts. 412º e ss., quando o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa.

Pelo juiz a quo proferido despacho a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo o requerido da instância.

Não se conformando com tal despacho, o requerente dele interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões: 1.ª Ao contrário do referido no despacho recorrido, não está em causa a mera responsabilidade civil da Requerida.

  1. Já que na ação principal o que se irá peticionar, a título principal, será a condenação da Requerida a remover a obra em questão da propriedade do Requerente.

  2. O facto de a Requerida ser uma empresa pública concessionária de um serviço público não altera esse facto, posto que tal, por si só, não é suficiente para qualificar a questão como enquadrando-se numa relação jurídico-administrativa.

  3. Tal poderia ser assim se a atuação lesiva do direito de propriedade do Requerente estivesse respaldada num qualquer ato administrativo ou então diretamente em normas de direito administrativo que lhe permitisse esse ato ablativo da propriedade do Requerente.

  4. Cremos, aliás, que é a essa a ratio da jurisprudência invocada no Despacho recorrido.

  5. Porém, no caso concreto nada disso existe, mas tão só uma obra pública realizada sem procedimento válido em propriedade alheia.

  6. De facto, não se vê como é que se pode entender que no caso em concreto a Requerida tenha atuado no âmbito de normas de direito de administrativo que permitissem a sua atuação e que criasse no Requerente uma situação de especial sujeição.

  7. Ademais, e ao contrário do referido no despacho recorrido, não é verdade que a Requerida tenha alegado que “a atuação foi levada a cabo na sequência de concurso público de que a requerida foi entidade adjudicante que por seu turno celebrou contrato público, para a execução de obra pública, com um cumprimento de contrato público”.

  8. De resto, a jurisprudência nacional (v. acórdãos citados nas alegações) tem entendido em casos semelhantes aos dos presentes autos, em que em que não existe substrato administrativo próprio para a realização de obra pública em terreno alheio em violação do direito de propriedade, é admissível embargo de obra nova em tribunal judicial.

  9. Acresce que a questão material em causa diz respeito a saber se a obra pública em questão se acha inserida em caminho público, como sustenta a Requerida, ou em terreno privado, como sustenta o Requerente, o que também constitui matéria da competência dos tribunais judiciais.

  10. O facto de se ter implantado obra pública não altera, por si só, possivelmente em decorrência da natureza da relação existente, pois que não tendo a realização da obra em questão precedida por qualquer dos actos e formalidades a seguir para a transmissão da propriedade para o domínio público ou para a constituição de servidão administrativa, estamos perante uma ocupação grosseira em que a Administração não goza de qualquer prerrogativa especial.

  11. Assim sendo, ao considerar que os tribunais judiciais não eram competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente providência cautelar o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 211.º, n.º1, da CRP, 64.º do CPC, 80.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º1, do ETAF.

Conclui pela revogação do Despacho recorrido, julgando-se competente o Tribunal Recorrido para conhecer da presente providência cautelar.

Foram apresentadas contra-alegações no sentido da manutenção do decidido.

Dispensados que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só: 1. (In)Competência material do tribunal.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO 1. Competência material para julgar a presente ação: tribunais comuns ou tribunal administrativo.

Com o presente procedimento pretende o autor a ratificação judicial do embargo por si efetuado a uma obra que a ré levava a cabo, alegadamente em terreno propriedade do autor.

O tribunal recorrido, considerando encontrar-se em causa uma obra levada a cabo por uma concessionária de direito público e a responsabilidade civil daquela pela prática de um ato ilícito no cumprimento de contratos públicos ou da sua competência legal e em prossecução de um interesse público de abastecimento de água às populações, concluiu ser tal litígio passível de enquadramento na previsão das als. f) e g) do art. 4º do ETAF, e como tal, da competência do tribunal administrativo.

O embargante insurge-se contra tal decisão, alegando que o facto de a requerida ser uma empresa pública concessionária de um serviço público não é suficiente para enquadrar o litígio no âmbito de uma relação jurídico-administrativa: não se encontrando a atuação da requerida respaldada num qualquer ato administrativo (nomeadamente, se existisse uma declaração de utilidade pública destinada à expropriação da parcela ou à constituição de uma servidão administrativa), a defesa do direito de propriedade contra uma intrusão abusiva de terceiro é questão submetida à jurisdição dos tribunais comuns.

Apesar da reforma da justiça administrativa operada pela Lei nº 12/2002, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), ter pretendido clarificar o âmbito da justiça administrativa, a específica questão objeto do presente recurso não tem obtido resposta uniforme por parte da jurisprudência: enquanto ao nível dos tribunais da relação as decisões oscilam entre a atribuição de competência aos tribunais comuns e a atribuição de tal competência aos tribunais administrativos, o tribunal dos conflitos tende a atribuir tal competência à jurisdição administrativa[1].

Genericamente, a opção por uma ou outra das jurisdições é feita em conformidade com o enquadramento que fazem da situação em causa, qualificando-a, uns como uma relação jurídico-administrativa e outros como uma relação jurídica de direito privado.

Sendo residual a competência atribuída aos tribunais judiciais – tendo competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos...

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