Acórdão nº 262/14.6TAOAZ-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 15 de Outubro de 2014

Magistrado ResponsávelF
Data da Resolução15 de Outubro de 2014
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 262/14.6TAOAZ-A.P1 Oliveira de Azeméis Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto (2ª secção criminal) I. RELATÓRIO No processo de Inquérito nº 262/14.6TAOAZ, dos serviços do Ministério Público, do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, foi indeferida a realização de uma busca e apreensão ao consultório médico/B…, Lda., por despacho judicial datado de 5 de junho de 2014, com o seguinte teor: “Veio o Digno Magistrado do Ministério Público requerer a emissão de mandados de busca e apreensão ao consultório médico/B…, Lda., que indica a fls.45, por remissão para fls. 41, com o objetivo de apreender a lista de pessoas atendidas no dia 17/02/2014 pelo médico subscritor do Atestado de fls. 6 (C…), constituído arguido a fls. 32 e toda a documentação clínica na posse do aludido médico e ou / Clínica no que respeita ao arguido D….

Sustenta a relevância da requerida busca e apreensão dos aludidos documentos por forma a deles aferir se o recibo foi datado de 17/02/2014, aferir da existência de efetiva consulta e bem assim de prescrição de qualquer medicação, pois que o atestado médico não foi autenticado por qualquer Serviço Médico Nacional de Saúde, nem dele se faz alusão à clínica em nome da qual foi emitido recibo.

Está pois em investigação a prática de um crime de atestado falso da previsão do artigo 260° do Código Penal, relativamente a ambos os arguidos.

Cumpre apreciar.

Ora, a busca e a apreensão só pode ter lugar nos casos previstos na lei, sendo que regime próprio estabelecido para as buscas foi determinado pela existência de normas constitucionais que lhes impõem limitações.

E, define-se o âmbito da busca no artigo 174º, nº 2 do CPP, a qual é permitida em lugares reservados ou não livremente acessíveis ao público quando há indícios de que o arguido ou qualquer outra pessoa que deva ser detida, ou os objectos que se relacionam com um crime ou que possam servir de prova deste, se encontram nesses lugares, acrescentando o nº 1 do artigo 178º do mesmo diploma legal que são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no bocal do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova.

Porém, a busca deve ter subjacente a observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar e privada, de modo a acautelar o núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio titular do direito (artigos 26º e 34º da CRP) e ainda no caso concreto tratando-se ainda de um pedido de busca e apreensão de documentos a um consultório/clínica médica e elementos e registos clínicos (que contenham informação de saúde sobre o visado), estes sujeitos a sigilo profissional médico (art. 180°/1 do CPP e 85° a 90° do Código Deontológico da Ordem dos Médicos), salvaguardados pelo direito à reserva da vida privada e proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, nomeadamente os respeitantes à saúde (arts. 26°/1 e 35°/4 da CRP).

Devemos apreciar da conveniência da apreensão da lista das pessoas atendidas, do respectivo processo clínico e da quebra do sigilo profissional que lhe está subjacente.

No caso em apreço, os interesses em conflito têm uma referência constitucional, que passam, por um lado, pelo direito à reserva da vida privada e de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, nomeadamente os respeitantes à saúde (26°, n.º 1 e 35º, n.º 4 Constituição), e, por outro lado, pelo dever e o interesse público do Estado em exercer o seu "jus puniendi", realizando a justiça penal (202º Constituição), cabendo ao Ministério Público o exercício da acção penal (219.° Constituição).

Nesta última vertente, estes direitos de reserva à vida privada e de autodeterminação informativa no domínio da saúde, têm, sob o ponto de vista legal, um duplo sentido. O primeiro, enquanto direito dos doentes, como se pode desde logo constatar através da Lei de Bases da Saúde, ao preceituar na sua Base XIV que os utentes têm direito a "Ter rigorosamente respeitada a confidencialidade sobre os dados pessoais revelados". No mesmo sentido vai o regime jurídico dos cuidados de saúde primários, decorrente da Lei n.º 60/2003, de 01-04, ao instituir que “Constituem direitos dos utentes: O rigoroso sigilo, por parte do pessoal, relativamente aos factos de que tenha conhecimento por motivo do exercício das suas funções” (5.º, n.º 1, al. c)).

O segundo, enquanto obrigação legal e deontológica dos médicos, como decorre do próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos, enquanto vertente essencial da relação de confiança médico-doente (85.º, 86.º e 87.º).

Ora, pese embora, a direcção do inquérito seja da exclusiva competência do Mº Pº, o controle do Juiz de Instrução sobre os meios de obtenção de prova na fase de inquérito, não obstante sob promoção do Mº Pº (já que, como se compreende, não é o JIC que determina quais os meios de prova cuja produção se mostra conveniente para a descoberta da verdade), não se limita a um mero juízo de ilegalidade.

Com efeito, basta uma breve leitura do no 1 do art.º 174º do C.P.Penal, para se concluir que os pressupostos da busca, depende da existência de indícios de que alguém oculta qualquer objeto relacionado com o crime ou que possam servir como meio de prova (conforme se requer) e que se encontrem em lugar reservado.

A busca, domiciliária ou em consultório médico, só deve ser autorizada pelo juiz, quando já houver indícios suficientes da prática de crime e identificação de suspeitos.

Por outro lado, tal meio de obtenção de prova deve observar os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação, preservando a tutela de direitos constitucionais.

Dai a necessária intervenção /autorização /ordem de um juiz independente e neutro à investigação, que ao apreciar o pedido de emissão dos respectivos mandados, deve avaliar, fundamentando a sua pertinência, se as provas que se pretendem no podem igualmente ser obtidas por outros meios menos lesivos e limitativos de direitos.

E, conforme já referimos o segredo médico é, de todos, o que suscita as questões mais complexas e delicadas, como desde logo se compreende face ao plano axiológico em que se situam, onde se imbricam valores essenciais como a vida, a saúde, a intimidade da vida privada, a liberdade individual, a dignidade da pessoa humana, que poderão conflituar com outros princípios também valiosos, a demandar uma solução que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT