Acórdão nº 438/12.0GAVFR.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 18 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelRAUL ESTEVES
Data da Resolução18 de Março de 2015
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam em Conferência os Juízes que Integram o Tribunal da Relação do Porto 1 Relatório Nos autos 438/12.0GAVFR que correm os seus termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Santa Maria da Feira, na sequência de um despacho de arquivamento proferido pelo Digno Magistrado do Ministério Público em sede de Inquérito, veio o assistente B… requerer a abertura de instrução, alegando para tanto o que consta de fls. 110 a 117 dos autos.

Sobre esse requerimento recaiu o despacho de indeferimento constante de fls. 141 e seguintes, com o seguinte teor decisório: (…) 2.

Cumpre tomar posição quanto à admissibilidade da instrução.

  1. A pretensão do assistente em ver pronunciado o arguido está votada ao fracasso.

    3.1.

    Prescreve o artigo 287.º, n.º 1 que “o requerimento [para a abertura da instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c). Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas”.

    Ou seja, dito de outro modo, ainda que o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente (desde logo porque não está sujeito a formalidades especiais) não tenha de revestir a forma de uma pura acusação, nem precise de respeitar todos os requisitos do artigo 283.º — diferentemente do que, nos termos do artigo 308.º, n.º 2, acontece com o despacho de pronúncia — o certo é que deve conter, “sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (artigo 283.º, n.º 3, al. b)) e ainda “a indicação das disposições legais aplicáveis” (artigo 283.º, n.º 3, al. c)).

    Disto resulta que — o que é extremamente importante no caso dos autos ― que é a acusação do Ministério Público ou do assistente ou o requerimento de abertura de instrução que define e fixa o objeto da instrução. E, neste sentido, pode dizer-se que o objeto da acusação ou do requerimento de abertura de instrução é o objeto da própria instrução, fixando e delimitando os poderes de cognição do juiz de instrução ― de acordo com o seu poder-dever de investigar, pode ordenar todas e quaisquer provas, mas só desde que estas digam respeito ao objeto do processo ― assim como determina a extensão do caso julgado, pois a decisão instrutória não poderá ir além do objeto proposto na acusação (seja do Ministério Público seja do assistente) ou do requerimento de abertura de instrução.

    Deste modo, consegue-se aquilo que vulgarmente é designado pelo efeito da vinculação temática do tribunal, aqui se consubstanciando os princípios da identidade, unidade ou indivisibilidade e da consunção do objeto do processo penal no que à instrução diz respeito.

    Aliás, é na decorrência destes princípios que no artigo 303.º do Código de Processo Penal se estabelece que “se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário” (n.º 1) e verificando-se uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução, esta alteração “não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância” (n.º 3). Inclusivamente, a se a decisão instrutória for além da acusação do Ministério Público ou do assistente ou do requerimento de abertura de instrução, isto é, se pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para a abertura de instrução, será nula nessa parte. É a sanção que se mostra prevista no artigo 309.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

    Dito isto, fica claro que a acusação do Ministério Público ou o requerimento de abertura de instrução vincula o Tribunal, constituindo a pedra angular de um efetivo e consistente direito de defesa do arguido, que fica protegido contra os arbitrários alargamentos da atividade cognitiva e decisória do Tribunal, assim como se lhe garante um direito de contrariedade e de defesa contra todos os factos que lhe imputam.

    Assim, tal como a acusação deve cumprir o disposto na alínea b) do referido artigo 283.º, n.º 3 ― e para tal basta que nela constem os factos constitutivos do tipo (objetivo e subjetivo) legal de crime ― deve o requerimento de abertura de instrução descrever os factos constitutivos do crime imputado ao arguido.

    3.2.

    Ora, compulsado o requerimento de instrução apresentado pelo assistente B…, verifica-se que o mesmo não respeita minimamente estas exigências.

    Na verdade, o assistente imputa ao arguido a prática de: – um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal; – um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 1, als. a) e f) do Código Penal ou, pelo menos, um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal; e – um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal.

    Como dissemos, só se poderá falar que o arguido cometeu um crime se na acusação ou no requerimento de abertura de instrução constar o elemento objetivo e subjetivo do tipo legal de crime que se imputa ao arguido.

    3.3.

    No que diz respeito aos elementos objetivos do tipo ou o tipo objetivo de ilícito, importa considerar: o agente, a conduta e o bem jurídico (assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, pág. 278, estando desenvolvido o seu tratamento a págs. 278 a 303; do mesmo autor, Textos de Direito Penal: Doutrina Geral do Crime (Lições ao 3.º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), com a colaboração de Nuno Brandão, edição policopiada, 2001, pág. 18; desenvolvendo estes itens, págs. 19 a 37).

    1. Diz-se no artigo 191.º do Código Penal que “quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissão ou atividades, ou em qualquer outro lugar vedado não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.

      Lido o requerimento de abertura de instrução, pode dizer-se que, no entender do assistente, o arguido praticou este crime porquanto, entrou numas instalações que se encontravam arrendadas ao assistente sem que este tivesse autorizado, sendo as fechaduras que aí havia colocado violadas e arrombadas.

    2. Quanto ao crime de furto qualificado imputado ao arguido, estatui-se no artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal que “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 ano ou com pena de multa”.

      Por seu turno, se a coisa furtada for “de valor elevado” — entendendo-se este como aquele que “exceder 50 unidade de conta avaliadas no momento da prática do facto” (artigo 202.º, al. a) do Código Penal — ou tendo o agente “introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar”, a pena é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias (artigo 204.º, n.º 1, als. a) e f) do Código Penal).

      Considerando o teor do requerimento de abertura de instrução, se bem o entendemos, os factos imputados ao arguido que levariam a que o mesmo fosse pronunciado teriam que ver com a entrada no edifício arrendado ao assistente — entrada que se terá dado por arrombamento, já que as “portas de entrada desse imóvel” foram “violadas e arrombadas” — tendo o arguido levado uma máquina de tratar rolhas de cortiça no valo de cerca € 4 500 e, além disso, apropriou-se de duas ventoinhas no valor de € 750 que se encontravam no interior do imóvel a que, agora, o assistente não tem acesso.

    3. Por fim, relativamente ao crime de dano, estatui-se no artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal que “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

      No entender do assistente, o arguido cometeu este crime porquanto removeu para o exterior do imóvel rolhas de cortiça e outros produtos e ferramentas propriedade do assistente e que, ficando sujeita ao tempo, nomeadamente às intempéries, ficaram danificadas e, além disso, o arguido queimou tais bens.

    4. Verifica-se, pois, que no requerimento de abertura de instrução se mostram descritos factos suscetíveis de preencher os elementos típicos do tipo objetivo de ilícito relativos ao crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. e) do Código Penal, em conjugação com as alíneas a) e d) do artigo 202.º do aludido diploma (e já não os três crimes referidos pelo assistente).

      3.4.

      Mas, como já dissemos, só há crime se estiverem preenchidos não só os elementos do tipo objetivo, mas...

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