Acórdão nº 696/12.0PDPRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 25 de Março de 2015
Magistrado Responsável | MARIA DOLORES SILVA E SOUSA |
Data da Resolução | 25 de Março de 2015 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Rec. Penal 696/12.0PDPRT.P1 Comarca do Porto Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
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secção criminal.
I-Relatório.
No Processo Comum Colectivo nº 696/12.0PDPRT da Instância Central, 1ª secção criminal, da Comarca do Porto, foram submetidos a julgamento, entre outros, os arguidos B…, C… e D…, com os restantes elementos identificativos constantes do acórdão a fls. 977 dos autos.
Por acórdão de 23 de Outubro de 2014, depositado no mesmo dia, foi deliberado: «Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal colectivo em: I)(…) II) Condenar o arguido C… pelo cometimento, em concurso efectivo, os termos do artigo 30º do Código Penal de: - um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de quatro anos e três meses de prisão - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, d) da Lei n.º 5/06, de 23.02, na pena de dois meses de prisão; E, em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77º do Código Penal, na pena única de quatro anos e quatro meses de prisão.
III) Condenar o arguido D… pelo cometimento, em concurso efectivo, os termos do artigo 30º do Código Penal de: - um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de um ano e oito meses de prisão.
-- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, d) da Lei n.º 5/06, de 23.02, na pena de dois meses de prisão; E, em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77º do Código Penal, na pena única de um ano e nove meses de prisão.
IV) Condenar o arguido B… pelo cometimento, em concurso efectivo, os termos do artigo 30º do Código Penal de: - um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de um ano e oito meses de prisão.
- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, d) da Lei n.º 5/06, de 23.02, na pena de dois meses de prisão; E, em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77º do Código Penal, na pena única de um ano e nove meses de prisão.
(…) Declaram-se perdidos a favor do Estado os estupefacientes, dinheiro, mochila, cofre, bolsa, munições, x-acto e embalagens apreendidos nos autos.
Os demais objectos apreendidos serão devolvidos aos seus donos.
Custas: vai cada um dos arguidos condenado em 5 UC de taxa de justiça e, solidariamente, nas custas do processo.
(…)»*Inconformados os arguidos B…, C… e D…, vieram interpor cada um o seu recurso.
O recorrente C… apresentou a motivação (original) de fls. 1120 a 1134 que remata com as seguintes conclusões: ……………………………………………… ……………………………………………… ………………………………………………*O recorrente B… apresentou a motivação (original) de fls. 1093 a 1118 que remata com as seguintes conclusões: «1. O recorrente não se conforma com o Douto Acórdão, aqui recorrido, na parte em que o condena pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/06, de 23/1.
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O tipo de crime previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/06, de 23/1 viola o núcleo essencial do princípio da legalidade penal, plasmado no artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
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O tipo legal sub judicio não cumpre esta exigência constitucional, carecendo de certeza e determinabilidade.
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A sua redacção não permite ao comum cidadão perceber o conteúdo proibitivo da norma, nem formular sob a futura conduta um juízo de ilicitude, em muitas das situações nela “previstas”.
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Este é um problema de interpretação literal — do próprio texto legal -, pelo qual o cidadão não deve ser responsabilizado.
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Tanto quanto nos parece, a condenação pelo cometimento desse crime está amplamente (e inconstitucionalmente) disponível à discricionariedade judicial, operada através de um tipo incriminador tão vago, confuso e até redutor, que inviabiliza a percepção do comum dos cidadãos, quanto aos comportamentos que se visa punir e cuja prática se pretende dissuadir.
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Mas tanto quanto julgamos, a inconstitucionalidade da norma sub judicio não decorre apenas da violação do artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
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De facto, consideramos que o tipo de crime previsto no artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/06, de 23 de Janeiro viola o princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, implicitamente consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
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O crime de detenção de arma proibida visa tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas.
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Trata-se de um crime de perigo abstracto, porque não pressupõe nem o dano/lesão nem a efectiva colocação em perigo do bem jurídico tutelado pela incriminação.
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Rejeitamos que todas as situações (deficientemente) previstas no artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/06 sejam aptas a colocar em perigo o bem jurídico tutelado, e portanto, a extensão da incriminação ultrapassa a constitucional antecipação da tutela dos bens jurídicos, e viola o princípio da necessidade das penas.
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A aplicação deste artigo implica a incriminação de um comportamento (a detenção de cartuchos vazios) que em absoluto não é apto a constituir um perigo ao bem jurídico protegido.
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Nesta medida, o legislador ordinário previu e o julgador impõe pesados sacrifícios resultantes da aplicação de penas a quem, com o seu comportamento, não consegue sequer colocar em perigo um bem jurídico fundamental - a segurança.
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À mesma conclusão chegamos nas situações em que um cidadão guarda uma munição de arma de fogo não vazia, mas não tem na sua disponibilidade fáctica uma qualquer arma de fogo.
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A lei já prevê e pune a detenção da arma de fogo, o que torna inútil, exagerado e desproporcional a incriminação a guarda de munições.
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Outro exemplo da inconstitucionalidade da norma está na incriminação penal de quem traz consigo uma munição de arma de fogo desacompanhada da arma de fogo. Tal acção é absolutamente insusceptível de criar um perigo na segurança e tranquilidade sociais.
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Rigorosamente, o desvalor da acção idónea a causar um perigo de circulação/utilização de armas de agressão está na detenção/circulação da própria arma.
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Ou seja, num ponto de vista de aptidão, é diferente que o cidadão detenha a arma e não detenha a munição ou que o cidadão detenha a munição e não detenha a arma.
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Prius, pela facilidade de obtenção da munição relativamente à obtenção da arma: a munição é muito mais pequena, muito mais barata e não há uma consciência social de ilicitude com dignidade jurídico-penal quanto à sua disponibilidade fáctica.
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Secundu, porque uma munição de arma de fogo não é idónea para ser utilizada como arma de agressão: não consegue lesar nada nem ninguém a não ser que seja projectada por uma verdadeira arma. Por outro lado, uma arma de fogo é naturalmente um instrumento susceptível de causar dano, independentemente de ser utilizada para projectar uma munição. Pode ser utilizada para deferir directamente uma pancada em algo ou alguém de maneira a causar - até - a morte de uma pessoa (pense-se numa forte pancada na cabeça da vítíma).
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Tercius, porque a arma de fogo pode ser utilizada como instrumento de intimidação. A munição, por si só, não! E se o bem jurídico tutelado pelo crime de detenção de arma proibida é a segurança e tranquilidade públicas, também a intimidação, a ameaça e a coacção são acções desvaliosas que o crime quer prevenir.
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Pois bem, não deixamos de considerar que não viola o princípio da necessidade de pena ou medida de segurança o “tráfico” de munições de arma de fogo. Mas o legislador ao não distinguir tipicamente a situação de quem traz consigo uma munição de arma de fogo da situação de quem exporta ou importa munições de arma de fogo ou as vende ilicitamente está a violar o referido princípio.
Por fim, 23. Consideramos que o tipo de crime previsto no artigo 86.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 5/06, de 23 de Janeiro viola o princípio da culpa (artigo 32.º, n.º 2 da CRP), o princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CRP) e o princípio da presunção da Inocência (artigo 32.º, n.º 2 da CRP), na medida em que faz depender a verificação do crime (pelo menos em algumas situações) de um facere, posterior à prática dos factos: a justificação da posse da “arma”.
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Além das causas de justificação que excluem a ilicitude de uma conduta nunca fazerem parte do tipo incriminador, 25. A verificação deste crime parte de uma presunção de ilicitude/culpa, que só é afastada se o arguido decidir não fazer uso de um direito que lhe é constitucionalmente garantido: o direito ao silêncio.
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Como sabemos, o silêncio do arguido não o pode prejudicar, mas aqui faz pior: torna-o um criminoso! 27. Mas também aqui se reforça a violação do princípio da legalidade: se a justificação (a que se refere o legislador) não é a licença para a posse de arma, em que se pode traduzir? 28. Em boa verdade, o cometimento do crime está ao arbítrio do julgador, que pode admitir qualquer “justificação” ou nenhuma, a seu bel-prazer.
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Por outras palavras, a justificação a que se refere o tipo de crime não está balizada objectivamente, como estará uma situação de exclusão da ilicitude como o estado de necessidade, a legítima defesa e a acção directa.
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As violações dos princípios constitucionais aqui invocadas estão vertidas na norma em si mesmo considerada, e uma qualquer interpretação jurisprudencial que contorne estas questões será uma interpretação que não encontra na letra da lei uma mínima correspondência.
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Portanto a condenação de um qualquer cidadão pelo cometimento do crime previsto no artigo 86.º, n.º 1, alínea d) do DL 5/06 é materialmente inconstitucional.
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Daí que no caso aqui controvertido a condenação do recorrente pela prática do crime de detenção de arma proibida seja inadmissível à luz da Constituição da...
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