Acórdão nº 655/11.0TBFLG.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 04 de Maio de 2015

Magistrado ResponsávelCARLOS QUERIDO
Data da Resolução04 de Maio de 2015
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 655/11.0TBFLG.P1 Sumário do acórdão: I. Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário; faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

  1. A interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, na impossibilidade de apuramento de tal vontade, há que averiguar qual o sentido deduzido do comportamento do declarante por um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.

  2. Só após se concluir, face ao confronto dos meios probatórios, pela inviabilidade de reconstituição da vontade real das partes manifestada num escrito particular (em sede de impugnação da decisão da matéria de facto), se deverá recorrer às regras interpretativas previstas nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.

  3. Questionando-se se através de um escrito particular as partes acordaram que o autor cedia a sua posição contratual nas prestações suplementares por ele constituídas a favor da ré sociedade, mediante pagamento do 2.º réu (sócio restante), a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e reembolso dos suprimentos, e resumindo-se o recurso à impugnação da decisão matéria de facto, poderá proceder-se nessa sede à aplicação das regras interpretativas enunciadas, com vista a uma resposta definitiva quanto à demonstração ou não do facto em causa.

    Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório B… intentou em 25.03.2011, no Tribunal Judicial de Felgueiras, acção declarativa ordinária contra C…, Lda. e D… e esposa E…, formulando os seguintes pedidos de condenação dos réus: a) que sejam os segundos réus D... e esposa E… condenados a pagar ao autor a quantia de 79.807,96€, a cujo pagamento/restituição se obrigou o segundo réu por negócio/convenção junto a fls. 26 e 27 dos autos, acrescida de juros legais desde a data da assinatura do acordo referido, ou quando assim se não entenda, desde 08.11.2010, ou ainda, quando assim se não entenda, desde a citação até efectivo e integral pagamento; subsidiariamente, e para o caso do primeiro pedido ser julgado improcedente, b) que seja declarada a nulidade da constituição de todas as prestações suplementares constituídas pelo autor em favor da primeira ré C…, no valor global de 79.807,96€, e inscritas nos últimos balanços anuais desta, e consequentemente, condenada esta primeira ré no seu reembolso ao autor, com juros legais desde a citação até integral pagamento.

    Para fundamentar as respectivas pretensões alegou o autor em síntese: em 09/04/2010, o autor e o segundo réu, este por si e em representação da primeira ré, outorgaram no Cartório Notarial de Celorico de Basto, a cessão de quotas do primeiro para o segundo, e para a referida representada deste, C…, Lda, nas proporções constantes da referida escritura, que teve por objecto a divisão, cessão e unificação de quotas, nos moldes lá exarados e a renúncia à gerência por banda do autor; paralelamente, e na mesma data daquela escritura de cessão de quotas, o autor foi reembolsado pela primeira ré do valor dos suprimentos que lhe havia efectuado até aquela data, no montante de 43.956,00€; sucede que ao tempo das aludidas cessões de quotas, o autor tinha efectuado a favor da primeira ré “prestações suplementares” no valor de 79.807,66€, correspondentes a metade das prestações suplementares globais com que os então únicos sócios – o autor e o segundo réu -, tinham contribuído para a sociedade, conforme resulta da inscrição contabilística nos últimos balanços anuais da primeira ré; o autor e o segundo réu haviam acordado antes da aludida escritura e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele autor na primeira ré, ao segundo réu, por aquele mencionado valor de 79.807,66€, visando o adquirente transferi-las para seu nome no âmbito da sociedade primeira ré, a fim de as inscrever como por si efectuadas ou lhe pertencendo, nos competentes registos de escrituração comercial, ou obter o seu reembolso junto da sociedade; o autor e o segundo réu chegaram a assinar, também em 09/04/2010, um documento que visava a cedência pelo 1º ao 2º das prestações suplementares no aludido valor de 79.807,66€ “por valor igual ao seu valor nominal”; quando tal documento já estava assinado em duplicado pelos aludidos intervenientes maridos, o segundo réu anunciou que não tinha consigo o pagamento devido, ficando então combinado entre o autor e sua esposa, e ele segundo réu, que dentro de 2/3 dias este procederia ao pagamento e só depois a esposa do 1º assinaria o documento que titulasse tal cessão; porém, tal não ocorreu, o que corresponde, por parte do segundo réu, ao incumprimento de obrigação contratualmente assumida, gerando, pois, a obrigação de indemnizar, cujo valor corresponde, precisamente, ao da obrigação não cumprida, atento o dano causado; se assim não se entender, sempre, face ao regime legal das prestações suplementares, que consta dos artigos 210º e ss do código das sociedades comerciais, a constituição das prestações suplementares que se encontram inscritas na contabilidade, foi feita contra lei imperativa, o que determina a sua nulidade, com efeito retroactivo e a consequência de tal nulidade é a de ser restituído quanto houver sido prestado.

    Contestaram os réus e reconvieram, concluindo, desde logo, pela improcedência total da acção, mais aduzindo a litigância de má fé por parte do autor e pedindo a intervenção principal da mulher do autor, para efeitos de contra ela proceder ainda o pedido reconvencional deduzido.

    Para justificarem a improcedência da acção alegaram os réus em síntese: o preço acordado na escritura a que alude o autor foi estipulado com referência ao valor das prestações suplementares por aquele efectuadas, razão pela qual o documento a que o autor reconduz o acordo no sentido do pagamento daquelas, a acrescer ao valor da cessão da quota, apenas se destinou a efeitos contabilísticos, posto que, ao contrário do alegado, nunca o segundo réu se comprometeu a pagar outra quantia; o facto de o autor vir agora reclamar a restituição dessas prestações suplementares, constitui um “venire contra factum proprium”, dada a declaração que fez no contrato, convocando, pois, o instituto do abuso do direito, no que interessa ainda à pretensão subsidiária.

    Em sede reconvencional alegam os réus contestantes: o comportamento de má fé do autor e a presente acção acarretam-lhes prejuízos, causando danos à boa imagem e bom-nome de todos os réus, junto dos fornecedores, bancos e clientes em geral; o fácil acesso de todos em geral aos meios informáticos leva a que a existência deste processo judicial seja já do conhecimento de terceiros, que se relacionam com o segundo e terceiro réus e principalmente com a primeira ré sociedade; terceiros esses – alguns – que já têm confrontado os réus com esta acção, levando-os a ter que dar explicações sobre a situação; e, bem assim, de outros que, nada dizendo, podem concluir que os réus são “caloteiros”; o que é mais grave na actual conjuntura difícil de mercado; pelo que o autor deve ser condenado como litigante de má-fé, em valor a arbitrar equitativamente.

    Concluem, pois, peticionando a condenação do autor a satisfazer-lhes as indemnizações pelo dano moral e litigância de má fé caracterizadas.

    O autor veio tomar posição quanto à reconvenção e intervenção principal deduzidas, pronunciando-se desde logo no sentido da inadmissibilidade de ambas e sempre pela respectiva improcedência, nos termos que do articulado respectivo melhor resultam.

    Em 24.02.2012 foi proferido despacho, no qual: foi dispensada a audiência preliminar; foi decidido indeferir a intervenção principal da esposa do autor, requerida pelos réus na contestação; foi considerada processualmente inadmissível pretensão reconvencional deduzida pelos réus; foi proferido saneador tabelar, aferindo-se positivamente a totalidade dos pressupostos processuais; foi condensada a factualidade relevante, com definição da matéria factual assente e organização da base instrutória.

    Realizou-se a audiência de julgamento, após o que em 27.11.2014 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Tudo visto, julgo a presente acção improcedente, por não provada, absolvendo os RR da totalidade dos pedidos deduzidos, a título principal e subsidiário.

    Custas da acção pelo Autor.

    Julgo improcedente a pretensão de condenação do Autor como litigante de má fé, absolvendo-o do pedido de condenação a satisfazer aos RR uma indemnização a tal título.

    Sem tributação, nesta parte.».

    Não se conformou o autor e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões: 1) Na presente acção, o Autor e aqui recorrente veio, em primeira mão, reclamar dos Réus D… e esposa, o pagamento do valor correspondente a metade das prestações suplementares que se encontravam relevadas na contabilidade da sociedade C…, Lda, da qual foram únicos sócios e com iguais percentagens no seu capital, em consequência da obrigação por estes últimos assumida no documento particular datado de 09/04/2010 que formalizou a cedência do direito de crédito àquelas prestações suplementares sobre a mencionada sociedade. E subsidiariamente vinha exigir da sociedade o reembolso do valor correspondente à metade das prestações suplementares inscritas na contabilidade da sociedade, por decorrência da nulidade nessa prestação, em virtude da obrigatoriedade da sua realização não constar da contrato de sociedade nem haver deliberações anteriores que as legitimassem.

    2) Contra-argumentaram os Réus, aduzindo que no negócio que envolveu a venda quota social ficou acordado que o valor respeitante à cedência da quota seria de 350.000€ ao que...

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