Acórdão nº 1/11.3PGPRT-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 16 de Setembro de 2015

Magistrado ResponsávelPEDRO VAZ PATO
Data da Resolução16 de Setembro de 2015
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Pr 1/11.3PGPRT-A.P1 Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto I – O Ministério Público veio interpor recurso da decisão instrutória proferida pelo Juiz 4 da UP 2 da 2ª Secção Central de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, na parte em que não pronunciou B… pela prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo artigo 23º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões: «1. Constitui objecto do presente recurso o segmento da decisão instrutória que indeferiu o requerimento do Ministério Público relativo à alteração da qualificação jurídica dos factos dos constantes dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação pública para três crimes de fraude sobre mercadorias.

  1. Nos presentes autos, foi o arguido B… acusado – entre outros crimes - pela prática de três crimes de burla simples, com referência à factualidade constante dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação pública, vindo, em sede de instrução, a ser não pronunciado por tais crimes, em virtude de a ofendida dos factos constantes nos pontos 1.3 e 1.4 ter desistido da queixa apresentada e o ofendido dos factos constantes no ponto 1.5 ter renunciado ao exercício do direito de queixa.

  2. No decurso da instrução, o Ministério Público requereu, em acta, uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos nos mencionados pontos 1,3, 1.4 e 1.5, pugnando que os mesmos deviam passar a integrar a prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, ilícito de natureza pública que se encontra numa relação de concurso aparente com o crime de burla por via de subsidiariedade legal expressa.

  3. Todavia, a Mma. Juiz a quo indeferiu tal requerimento, entendendo que a alteração da qualificação jurídica requerida configura uma alteração substancial de factos na medida em que, no seu entender, a desistência e renúncia ao direito de queixa dos ofendidos implica a expurgação do processo dos factos constantes nos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação, razão pela qual a alteração da qualificação jurídica dos mesmos implicaria a sua reintrodução nos autos o que consubstancia uma decisão surpresa para o arguido.

  4. Trazemos tal decisão à censura de Vossas Excelências por entendermos que: (i) A desistência ou renúncia ao exercício do direito de queixa não implica a expurgação automática dos factos do processo quando tais factos também integrem ilícitos de natureza pública em concurso aparente por via de uma relação de subsidiariedade legal expressa com os crimes semipúblicos que perderam relevância criminal por vontade do ofendido.

    (ii) A alteração da qualificação jurídica, in casu, não configura qualquer alteração – substancial ou não substancial – de factos e, por conseguinte, não implica qualquer decisão surpresa para o arguido.

  5. Comete um crime de fraude sobre mercadorias “Quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias de natureza ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem” - art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

  6. Tal ilícito encontra-se numa relação de subsidiariedade legal expressa relativamente a outros tipos de ilícito que punam a mesma conduta com pena mais grave, tendo em conta que, na fixação da respectiva moldura penal, o legislador estipulou a seguinte punição - “prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto estiver previsto em tipo legal de crime que comine para mais grave”.

  7. Ora, tal relação de subsidiariedade entre o crime de burla e o crime de fraude sobre mercadorias sucede com frequência, na medida em que são ambos crimes de engano e contra o património.

  8. No caso dos autos, os factos descritos na acusação nos pontos 1.3, 1.4 e 1.5, na medida em que consubstanciam a realização de vendas de veículos a consumidores cuja quilometragem ostentada no conta-quilómetros se encontra alterada pelo arguido que, no acto da venda, enganou os compradores/ consumidores quanto ao número de quilómetros real percorrido pelos veículos, ostentando, para o efeito, livros de revisões e fichas de inspecção que não continham dados verídicos, são susceptíveis de enquadrar quer a prática de um crime de fraude sobre mercadorias, quer a prática de um crime de burla.

  9. Quando assim é, tendo em conta a subsidiariedade legal expressa contida no segmento incriminatório do art. 23.º, n.º 1, in fine, do referido diploma legal, o arguido deve ser acusado pelo crime de burla e não pelo crime de fraude sobre mercadorias, quedando a incriminação pelo crime de fraude sobre mercadorias (“norma dominada”) com a não possibilidade de incriminação do crime de burla (“norma dominante”) – Cf. Neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/11/2005, proferido no âmbito do processo n.º 1965/05.1, disponível em www.dgsi.pt; e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à Luz da CRP e da CEDH, Universidade Católica Editora, pp. 133 e 134, notas n.ºs 6 e 7.

  10. Na verdade, seria perverso que tais desistências de queixa e renuncia ao exercício do direito de queixa tivessem por efeito precludir o Ministério Público de prosseguir criminalmente quanto aos crimes de natureza pública que subsistem na “norma dominada” – in casu, 3 (três) crimes de fraude sobre mercadorias.

  11. Aliás, tendo em conta a unidade do sistema jurídico-penal, jamais se poderia colocar “nas mãos do ofendido” o exercício da acção penal por parte do Ministério Público quanto a crimes de natureza pública em relação de subsidiariedade legal expressa com crimes de natureza semipública em que estes configurem a “norma dominante”.

  12. É importante ter presente que a desistência de queixa “Não é um direito do arguido à absolvição ou sequer à extinção do procedimento criminal” – cf. acórdão do STJ de 04/04/2013, proferido no âmbito do processo n.º 493/09.0PAENT-A.S1.

  13. A razão de ser da distinção entre crimes de natureza pública, semipública e particular, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger.

  14. No caso dos autos, a conduta imputada ao arguido B… pode ser mais severamente punida pelo crime de burla, tendo em conta o engodo criado directamente aos ofendidos causando-lhes prejuízo. No entanto, não nos podemos olvidar da opção do legislador em punir autonomamente a conduta por via de um crime público – fraude sobre mercadorias - quando nenhum outro tipo de ilícito com moldura penal mais grave se aplique.

  15. Com efeito, o legislador, ao tipificar um crime de natureza pública em relação de subsidiariedade legal expressa com um crime semipúblico, pretendeu acautelar a punição dos agentes quando os ofendidos não exerçam a sua faculdade de queixa.

  16. Face ao exposto, as desistências de queixa apresentadas jamais podem ter por efeito automático, como diz a Mma. Juiz a quo, a expurgação dos factos constantes dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 do processo. Tal expurgação só ocorreria se a factualidade em causa no presente recurso não integrasse, também, a prática de crimes públicos em concurso aparente com os crimes de natureza semipública, sob pena de atentar contra a unidade do sistema jurídico e colocar nas mãos do ofendido a legitimidade do Ministério Público para prosseguir criminalmente crimes públicos.

  17. Isto posto, cumpre referir que o art. 303.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, permite que o juiz de instrução altere a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, sempre que tal alteração não implicar a introdução de novos factos “extras” ao objecto do processo – factos - já fixado pelo Ministério Público.

  18. No caso dos autos, a alteração da qualificação jurídica do crime de burla para o crime de fraude sobre mercadorias que foi requerida ao Tribunal a quo não carecia de ser acompanhada de qualquer alteração de factos já que os factos constantes na acusação pública se subsumem, per si, ao mencionado ilícito. Com efeito, dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação pública consta, em suma, que – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/03/2005, proferido no âmbito do processo n.º 0411496, disponível em www.dgsi.pt: (i) O arguido B… vendeu a consumidores/ ofendidos veículos com uma quilometragem real superior àquela que era ostentada no seu conta-quilómetros que aliás foi por si reduzido – elemento objectivo.

    (ii) O arguido tinha conhecimento que estava a vender veículos com qualidades inferiores àquelas que aparentam, nomeadamente no que concerne à quilometragem percorrida, quilometragem essa que foi por si reduzida com o propósito de enganar os seus compradores, o que logrou – elemento subjectivo.

  19. A este propósito, o STJ já esclareceu que “não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime”- cf. acórdão de 07/11/2002, proferido no âmbito do processo n.º 02P3158, disponível em www.dgsi.pt.

  20. In casu, além do crime de burla ter uma moldura penal superior ao crime de fraude sob mercadorias, os direitos de defesa do arguido com a alteração da qualificação jurídica requerida não ficam beliscados, na medida em que todos os factos integrantes do mesmo constavam já do objecto do processo delimitado na acusação pública.

  21. Ao decidir da forma como decidiu, a Mma. Juiz a quo violou o disposto nos arts. 303.º, n.ºs 1 e 5, do Código de Processo Penal e art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.» O arguido B… apresentou resposta a tal motivação, pugnado pelo não provimento do recurso.

    O Ministério...

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