Acórdão nº 1184/14.6PIPRT.P2 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 12 de Julho de 2017

Magistrado ResponsávelELIA S
Data da Resolução12 de Julho de 2017
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso Penal 1184/14.6PIPRT.P2 1ª Secção Criminal Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto1.

Relatório1.1.

B…, arguido devidamente identificado nos autos acima referenciados, foi submetido a julgamento em processo comum e perante Tribunal singular, sob a imputação da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152, nºs 1, al. b), 2, 4 e 5 do C.P, pelos factos constantes da acusação deduzida pelo MP a fls. 595 a 603, que aqui se dão por reproduzidos.

1.2. Pela assistente C… foi deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido, reclamando deste o pagamento da quantia de €23.250,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência da sua conduta.

1.3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o arguido foi absolvido do crime e do pedido de indemnização civil.

1.4 O MP recorreu dessa decisão para esta Relação que, por acórdão de 9.11.16, anulou a sentença recorrida, por falta de fundamentação.

1.5. Proferida nova decisão, foi o arguido novamente absolvido do crime que lhe foi imputado, bem como do pedido de indemnização civil.

1.6. Novamente inconformado, o MP recorreu para esta Relação, terminando a motivação com as conclusões seguintes (transcrição): “1) A douta sentença recorrida é nula, por violação do disposto no artº 163º, com referência aos artºs. 374º/2 e 379º/1 a) e c) todos do Código de Processo Penal.

2) Apesar de afirmar que se baseou no relatório de perícia médico-legal de Psiquiatria efectuado pelo IML à ofendida, o Tribunal “a quo” divergiu frontalmente, não dos factos analisados, que se mantiveram intocados, mas das conclusões ali firmadas, considerando como não provado que a Assistente tivesse sentido medo e insegurança - e descartando a sua comprovada ansiedade, com base em meras convicções pessoais, sem razão de ciência, e “razões de experiência” não explicitadas - em total oposição ao Perito Médico que concluiu que a Assistente evidenciava sofrer tais sintomas, e admitido o nexo de causalidade reactivo entre tais sintomas e os eventos em apreço.

3) A prova pericial representa um desvio ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), dispondo o art. 163.º do CPP expressamente que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do Julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos.

4) A prova pericial constitui prova de apreciação vinculada, e «tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» - art. 151º do C.P.P.

5) O juízo técnico da prova pericial está subtraído à livre convicção do julgador, que, não tendo conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos, não pode, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia.

6) As conclusões de um exame pericial apenas podem ser colocadas em crise por outro meio de prova de idêntica natureza.

Caso não seja este o superior entendimento de Vªs. Excelências, sempre se dirá que 7) A sentença recorrida enferma de falta de fundamentação – cfr. arts. 374º/2 e 379º, 1a) do Código de Processo Penal.

8) O art. 374º/ 2 do CPP estipula a obrigatoriedade de fundamentação da decisão de facto, explicitando que a sentença deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

9) A fundamentação da douta sentença recorrida resume-se, no que diz respeito à prova testemunhal e declarações da Assistente e arguido, a escasso e omisso sumário das declarações prestadas em Audiência de Julgamento, despojado de qualquer análise crítica.

10) O mesmo se constata em relação à prova documental: apesar de afirmar ter apoiado a sua convicção nos documentos juntos aos Autos, a Mma Juiz “ a quo” apenas efectuou a “análise” dos emails remetidos pelo arguido - não se pronunciou relativamente à listagem de chamadas perdidas de fls. 76-80; - nem quanto aos Autos de transcrição das SMS trocadas entre o arguido e a testemunha D…, a fls. 302 e 303.

11) Desconhece-se o processo lógico elaborado pela Mma Juiz “a quo”, carecendo a sentença de uma cabal apreciação da prova, objectiva e motivada, pois não explana qualquer raciocínio em relação ao qual se possa formular um juízo, quer de discordância quer de concordância, pelo que, e por falta de fundamentação, é a mesma nula.

Caso não mereçam superior acolhimento os argumentos supra expendidos, cumpre-nos afirmar que 12) A douta sentença recorrida procedeu a um incorrecto enquadramento jurídico-penal dos factos, com decorrente violação do disposto no art.º 152° do Código Penal.

13) A douta sentença afasta a prática de um crime de violência doméstica, considerando os comportamentos do arguido como “stalking”.

14) Conclui que a conduta do arguido poderia ser enquadrada no tipo legal de crime de perseguição; e, tendo os factos sido praticados em data anterior à entrada em vigor da Lei 83/015, de 5/8, que aditou ao Código Penal o artº 154-A, considera que não pode o arguido ser perseguido criminalmente, atento o disposto nos artºs 1, nº1 do Código Penal.

15) Apesar de classificar o “stalking/ perseguição”, no qual integra os comportamentos do arguido, como uma conduta intimidatória, de perseguição, e que pela sua persistência e contexto de ocorrência, podem escalar em frequência e severidade o que, muitas vezes, afecta o bem-estar das vítimas, que são sobretudo mulheres e jovens; que a vitimação de alguém que é alvo (por parte de outrem de um interesse e atenção continuados e indesejados (vigilância, assédio, perseguição), podem gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo, o Tribunal “ a quo” não inscreve tais nefastos comportamentos e suas consequências no âmbito do crime de violência doméstica, considerando que “não se indicia aquele “quid”, aquele “plus”, a traduzir um maior desvalor ou da acção ou do resultado, sequer, um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima nem uma particular danosidade social do facto, que afinal, fundamentam a especificidade deste crime” 16) No entanto, na sua motivação de Direito, e resenhando os factos dados como provados, a douta sentença recorrida descreve a factualidade imputada ao arguido, nomeadamente, referindo que a conduta do arguido, verificada ao longo de sensivelmente cinco meses, tem início logo após a separação do casal e é caracterizada pela constante abordagem da ofendida no sentido de dela se aproximar e procurar reatar a relação; que enviou à ofendida dezenas de e-mails, assim como flores e presentes, sobrevoou de avião a sua residência, e coloca-se nas imediações da mesma.

17) Afirma que os seus comportamentos traduzem uma atitude obsessiva em relação à ofendida e ao relacionamento amoroso que viveram e que terminou por iniciativa daquela.

18) Na alínea DD) dos factos dados como provados, decidiu que “Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sentiu inquietação (sendo certo que tal requisito não seria sequer essencial: “o crime de violência doméstica é um crime de perigo abstracto, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efectivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem actos em abstracto susceptíveis de provocar tais danos – cfr. o supracitado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Proc. nº 91/14.7PCMTS.P1, em 11/03/2015), 19) Concluiu que no entanto – salvo o devido respeito, erradamente - que “A conduta do arguido poderia ser enquadrada no tipo legal de crime de perseguição”.

20) Face ao exposto, mesmo que a factualidade dada como provada, e à qual a Mma Juiz se reporta, tivesse sido cometida actualmente, em plena vigência do referido artº 154º-A, entretanto aditado ao Código penal pela Lei 83/15, de 05/08, o arguido sempre deveria ser condenado, não pela prática de um crime de perseguição, mas pela prática de um crime de violência doméstica na sua vertente de mau trato psíquico – desde logo, porque a Assistente e vítima das suas condutas teve com ele uma ligação afectiva: foi sua namorada, tal como se deu como provado na al. A) da douta sentença recorrida.

21) O artº 154º-A, do Código Penal, tutela jurídico penalmente as situações que não se incluem no âmbito do artº 152º do Código Penal, ou seja, em que inexistem os laços familiares/afectivos ali em apreço; 22) Mesmo antes da entrada em vigor do supradito artº 154º-A, era já entendimento pacífico na Doutrina e Jurisprudência que as condutas integradoras dos comportamentos de stalking se integravam em condutas criminalmente tipificadas pelo Código Penal – v.g. nos crimes de ameaça, coacção, perturbação da vida privada, injúria, e, para o que ora nos ocupa, violência doméstica.

23) Encontram-se efectivamente preenchidos quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido – violência doméstica – pelo que deverá o mesmo ser condenado pela sua prática, com o que se fará inteira e sã JUSTIÇA.

” 1.7. Não foram produzidas contra-alegações.

1.8. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

1.9. Deu-se cumprimento ao disposto no art 417º, 2 do CPP.

1.10. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

  1. Fundamentação 2.1.

    Matéria de facto A sentença recorrida deu com assente a seguinte matéria de facto: “II - Fundamentação de facto: Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos: A) A assistente C… e o arguido B… namoraram durante cerca de seis meses, sem coabitação, no período compreendido entre Outubro/2013 e Março/2014; B) A relação de namoro entre a ofendida e o arguido terminou nos finais...

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