Acórdão nº 3091/15.6T8GDM.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 21 de Novembro de 2016

Magistrado ResponsávelMANUEL DOMINGOS FERNANDES
Data da Resolução21 de Novembro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 3091/15.6T8GDM.P1-Apelação Origem: Comarca do Porto-Gondomar-Inst. Local-Secção Cível-J3 Relator: Manuel Fernandes 1º Adjunto Des. Miguel Baldaia 2º Adjunto Des. Jorge Seabra Sumário: I- A junção de documentos na fase de recurso estribada na circunstância de ela se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artigo 651.º, nº 1 do CPCivil), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.

II- Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.

III- O juiz, ao interpretar um contrato, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode esquecer a lei constitucional, uma proibição, validamente estabelecida num contrato de arrendamento, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais do arrendatário.

IV- Ainda que estabelecida em contrato é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra, antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade.

V- Os animais, não obstante considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade, razão pela qual na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono.

VI- Por essa razão não deve o arrendatário pese embora a existência de cláusula contratual proibitiva, ser compelido à retirada de um canídeo do locado quando se prove que, além de não ser fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e do locador, reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade devendo, nestes casos, a referida cláusula considerar-se não escrita.

*I-RELATÓRIO Acordam no Tribunal da Relação do Porto: B…, residente no … nº .. casa ., na União das freguesias de …, … e … no município de Gondomar intentou a presente acção de despejo sob a forma de processo comum contra C…, D… e E… residentes na Rua … n º .., na União das freguesias de …, … e …, no município de Gondomar, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional e decretado o despejo imediato da ré do locado com a sua entrega livre de pessoas e bens, com base no incumprimento da ré; decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional, com base na violação das regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio e decretado o despejo imediato da Ré C… do locado, livre de pessoas e bens; sem prescindir, caso se entenda que não há razão legal para a resolução do contrato, que seja decretada a retirada imediato do cão do locado; todos Réus serem condenados a pagar à autora, título de indemnização, num valor de €7,5/dia, desde a sua citação até à retirada do cão, relegando-se para execução de sentença o apuramento do seu valor global.

*Os Réus contestaram invocando que o direito da Autora caducou, pois a Ré já possui um canídeo desde 2006, com conhecimento dos senhorios, mais impugnando, parcialmente, a matéria de facto.

* A Autora respondeu impugnando os factos atinentes à caducidade. *Foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade relativamente ao segundos Réus e se relegou, para momento posterior, o conhecimento e decisão relativa à excepção da caducidade.

*O processo correu a sua tramitação normal e, tendo tido lugar a audiência de discussão e julgamento foi, a final, proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e consequentemente condenou a Ré a retirar o cão do locado absolvendo-os quanto ao demais peticionado.

*Não se conformando com o assim decidido veio a Ré C… interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte: A- Os factos dados como não provada nos pontos 5.º ao 12º da sentença, deveriam ter sido dados como provados, atentas as declarações das testemunhas e o documento que se junta que segundo o Tribunal a quo seria elemento essencial para tais factos serem dados como provados; B- Não existiu contradição entre as testemunhas da Autora e as da Demandada, posto que a: C- Testemunha da Autora E…: do minuto 10:28 10:52 em sínteses refere que há 10 anos que a Demandada teve um cão; D- Efectivamente esta testemunha confirma a existência de canídeo, não sabe por quanto tempo.

E- A única testemunha da Autora que não conheceu outro cão anteriormente foi o Sr. F…, que contudo não foi peremptório no seu discurso, pois como conta da sentença refere “que tivesse visto, ela só teve este cão” F- conforme se constata não existiu contradição, posto que uma das testemunhas da autora refere a existência do canídeo, a outra não sabe e as quatro testemunhas da ré, cujo depoimento não foi posto em crise sendo pois considerada a sua idoneidade, aliás na sentença reproduzem-se as suas declarações, não se entende porque razão não se dão como provados os factos que comprovam a permanência da “G…” no locado em que reside a demandada.

G- Por outro lado alega o Tribunal a quo que não foi junto qualquer suporte documental que provasse que aquele animal pertencesse à Demandada. Na verdade não foi junto o registo de caninos, contudo analisando tais factos dentro da razoabilidade, a ausência de registo é perfeitamente aceitável, dado que segundo as testemunhas a cadela “G…”, terá sido acolhida em 2006, era uma cadela abandonada, rafeira, a legislação relativa ao registo dos caninos havia sido publicada pela primeira vez em 2003, ou seja tinha pouco tempo e a maioria das pessoas desconhecia esta obrigação, para além de que em regra nessa altura o que usualmente se verificava era que quem recorria ao registo eram as pessoas que compravam os canídeos e tinham atestada a sua raça e lhes colocavam o ship.

H- Por outro lado, foram juntas fotografias a fls. 9 e 10 do canídeo, e só não foram juntas acompanhadas dos filhos, porque se entendeu que se devia preservar a imagem das crianças, contudo tais fotografias existem conforme se demonstra com a junção da mesma às presentes alegações, nos termos do disposto no art.º 651º do C.P.C., já que tal junção só se revelou importante em virtude do julgamento e da posição assumida na sentença.

I- Devem ser considerados como provados os factos alegados pela Demandada nos artigos 3º ao 5.º e 18º ao 22º da contestação, alterando-se por consequência a fundamentação dada na sentença.

J- os senhorios não denunciando o contrato como o poderiam ter feito, já que se trata de contrato de duração limitada outorgado em 2004 e abstendo-se de qualquer procedimento legal nesse sentido, não obstante as sucessivas renovações contratuais, ao exercerem neste momento tal direito em violação do direito de propriedade, traduzido na posse de um animal de companhia, o cão, traduz o exercício ilegítimo de um direito, por aplicabilidade da figura do abuso de direito, art.º 334º do C.C.

K- Sem prescindir, caso assim não se entenda; L- O Tribunal ao quo, condenou a Demandada a retirar o cão do locado, por considerar que a ré se mantém em incumprimento de uma cláusula do contrato de arrendamento, que refere “Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal doméstico”.

M- A decisão de que se recorre, exigia uma fundamentação mais cuidada e a ponderação das circunstâncias que envolvem o presente caso posto que estamos perante um ser vivo, que é tido como um elemento da família e não perante uma coisa que se abandona a qualquer momento, cuja orientação nacional em termos de fundamentação é a protecção do animais.

N- Ficou provado, à contrário, que estamos perante um canídeo que não perturba, é meigo e não intimidante, late pouco, em síntese não estão em causa os direitos de personalidade da senhoria; O- Ou seja, in casu, estamos perante uma conflitualidade entre o direito de propriedade da Demandada, a posse do cão, e o direito ao cumprimento pontual do contrato da senhoria, P- Nos termos do art.º 335º n.º 2 do C.Civil, nestes casos deve-se optar pelo direito superior. Conforme supra se referiu o canídeo de nome “H…” não causa qualquer prejuízo à senhoria Q- Por outro lado, ficou provado que o canídeo reveste no seio desta família, de uma particular importância, posto que, se revela muito importante no desenvolvimento do I…, filho menor da Demandada que tem perturbações de ansiedade, conforme documento de fls. 68 (atestado médico) e declarações de J… e K…, conforme consta do 3.º parágrafo da sentença a fls. 7.

R- Ora avaliando os valores que estão em conflito atendendo aos dados constantes dos autos, temos um animal de companhia que é propriedade da Demandada, que nos termos do disposto no art.º 1305º do C.Civil que tem direito a exercê-lo de modo pleno, exigindo que terceiros se abstenham de invadir ou interferir na sua esfera jurídica. Temos ainda que, tal direito está a ser exercido de forma equilibrada e moderada, sem ofender direitos de terceiros e muito menos os da senhoria que se move por instintos de vingança, posto que em Agosto de 2015 teve uma discussão com a Demandada por causa das bolas das crianças e anunciou que a Demandada se iria arrepender (minuto 27:17 do depoimento da E… e minuto 8:59 ao 10:12 do depoimento da J… S- Ora estes factos não são essenciais, mas são factos instrumentais, que foram...

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