Acórdão nº 6662/09.6TBVFR.P2 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 21 de Novembro de 2016

Magistrado ResponsávelCORREIA PINTO
Data da Resolução21 de Novembro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 6662/09.6TBVFR.P2 5.ª Secção (3.ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): I - O objeto da ação popular, materializada, em termos de legislação comum, na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, consubstancia-se na defesa de interesses difusos, interesses da comunidade, designadamente o domínio público, aqui se incluindo o reconhecimento de que o outrora caminho depois transformado em estrada é uma via pública.

II - O alheamento do tribunal relativamente ao teor de um documento, não lhe dando a relevância que era devida, não configura omissão de pronúncia geradora de nulidade, mas antes vício na apreciação da prova, suscetível de apreciação a esse título em sede de recurso.

III - Desde que se prove que um caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público, pertencente àquela entidade pública, ou seja, que estamos em presença de um bem dominial possuído pela autarquia, como tal insuscetível de apropriação particular, inalienável e imprescritível, independentemente da sua afetação ao uso direto e imediato do público nada ter de imemorial.

Acordam, no Tribunal da Relação do Porto:I) Relatório 1.

b… e c… intentaram na comarca de Aveiro, instância local de Santa Maria da Feira, a presente ação popular, sob a forma de processo ordinário, contra d…, todos melhor identificados nos autos.

1.1 Os autores alegam que são donos e legítimos proprietários de prédio rústico no lugar de …, freguesia de …, sendo a ré dona de dois prédios contíguos, um urbano e outro rústico; outrora, os prédios que hoje ladeiam a Travessa … do lado do prédio dos autores e um prédio hoje urbano que fica no início da Travessa mas do lado direito, sentido poente/nascente, eram terrenos dos avós da autora; o caminho antigo entre as propriedades desde o lugar de … até atingir o prédio hoje dos autores era estreito e foi aberto pelos referidos antecessores, ficando com uma largura de cerca de 2 metros que dava para passar um carro de bois.

Entretanto, em 1984, a Junta de Freguesia de … quis alargar tal caminho, solicitando aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno, no que foi atendida, tendo o pai da autora, anterior dono do prédio antes mencionado, cedido cerca de 1,5 metros de largura em toda a extensão da sua confinância sul com o referido caminho e a ré cerca de 2 metros do lado oposto defronte à confinância do prédio dos autores; a autarquia realizou obras no caminho, transformando-o em estrada com a largura de 7 metros, reduzida para cerca de 6 metros de largura na parte final do troço, depois do portão de entrada no prédio dos autores, passando nessa estrada, entretanto denominada Travessa de …, quaisquer pessoas para acederem à povoação de …. e outra.

No ano de 1989, essa estrada foi asfaltada e dotada de ramal de energia e iluminação pública, tendo sido novamente asfaltada pela autarquia em 1999, constituindo acesso direto a prédios urbanos e estabelecendo ligação à povoação, sendo considerada tal via pela autarquia local como pública.

A ré, em 2005, espetou espigões em ferro no chão da estrada, concretamente antes de atingir a confrontação com o prédio dos autores, no sentido poente/nascente e colocou um portão fechado com aloquete em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo e os autores de acederem ao seu prédio com qualquer viatura, meio de transporte de bens ou trator para agricultar o terreno, estando forçados a ter o mesmo inculto.

Este comportamento da ré, para além de ser um facto público e notório, foi expressamente participado junto das entidades autárquicas e assunto levado a Assembleia Municipal e sujeito à apreciação da Câmara Municipal; com posições ambíguas, quer a Junta de Freguesia, quer sobretudo a Câmara Municipal, nada fizeram em defesa dos bens do domínio público e da livre circulação de pessoas e bens, para que a ré retire o portão da via pública, o que legitima a intervenção dos autores – invocando estes o disposto no artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 12.º da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular), conjugados com o artigo 26.º-A do Código de Processo Civil, na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, artigo 31.º na atual redação.

Terminam pedindo que se declare que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1.º da petição inicial; se declare que o outrora caminho referido supra depois transformado em estrada, melhor descrito nos itens 13.º a 56.º, é uma via pública; se condene a ré a reconhecer a pública dominialidade dessa via com o nome de Travessa …, a qual se inicia junto ao entroncamento com a rua … e termina junto à entrada da casa da ré, concretamente junto a um espigueiro ali existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de sensivelmente 7 metros; se condene a ré a retirar o portão que colocou nessa via pública, Travessa …, tal como consta das fotos juntas e a que se referem os artigos 59.º a 61.º da petição inicial, deixando a via livre e totalmente desimpedida de obstáculos, bens ou outra qualquer coisa, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e mormente o acesso dos autores ao seu prédio confinante com a via pública.

1.2 A ré contestou, começando por arguir, a título de exceção, a ineptidão da petição inicial (por alegada contradição do pedido com a causa de pedir), bem como a existência de caso julgado (alegando já ter sido o caminho em litígio objeto de outra ação e de procedimento cautelar), em que foram partes os ante possuidores e nas quais sempre referiram tal caminho como de servidão.

Impugnou ainda os factos alegados pelos autores e concluiu que a ação deve ser julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição integral do pedido.

1.3 Os autores apresentaram réplica, defendendo a improcedência das invocadas exceções de ineptidão da petição inicial e de caso julgado.

1.4 Foram citados a Freguesia … e o Município …, nos termos do disposto no artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.

O Município … veio declarar não pretender intervir nos autos a título principal nem ser neles representado pelos autores.

Procedeu-se ainda à citação edital dos habitantes de …; nenhum teve intervenção nos autos.

1.5 Proferido despacho saneador, aí se julgaram improcedentes a arguição da ineptidão da petição inicial e a exceção de caso julgado, nos termos de fls. 185 a 192.

Considerando que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, foi proferida sentença, julgando a ação improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da ré, por se entender não existirem no articulado inicial factos que permitissem concluir no sentido da demonstração do requisito da imemoriabilidade, na caracterização de caminho público.

Interposto recurso pelos autores, foi o mesmo julgado improcedente pelo Tribunal da Relação do Porto, que confirmou a decisão recorrida (fls. 372); em posterior recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 491 e seguintes), foi proferido acórdão que decidiu “revogar o acórdão recorrido, com a consequente anulação da decisão que ele confirmou, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com a seleção dos factos assentes e organização da base instrutória, seguindo-se os demais termos processuais até sentença final”.

No prosseguimento do processo e concluída a produção de prova e a audiência de discussão e julgamento, o tribunal proferiu sentença, terminando com a seguinte decisão: «Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, julgo a presente ação provada e nessa medida procedente, e em consequência: - Declaro que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1.º desta p.i.

- Declaro que o outrora caminho referido depois transformado em estrada, melhor descrito nos itens 13.º a 56.º da p.i., é uma via pública.

- Condeno a Ré a reconhecer a pública dominialidade dessa via com o nome de Travessa …, a qual se inicia junto ao entroncamento com a Rua … e termina junto à entrada da casa da Ré, concretamente junto a um … ali existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de sensivelmente 7 metros.

- Condeno a Ré a retirar o portão que colocou nessa via pública, Travessa …, tal como consta das fotos juntas e a que se referem os artigos 59.º a 61.º da p.i., deixando a via livre e totalmente desimpedida de obstáculos, bens ou outra qualquer coisa, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e mormente o acesso dos Autores ao seu prédio confinante com a via pública.

Custas (…).» 2.1 A ré, inconformada com a decisão proferida, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição integral): «

  1. Com o devido respeito por outra melhor opinião, a verdade é que se crê, não se está na presença de uma ação popular com os requisitos determinativos do disposto na Lei 83/95 de 31 de Agosto de 1995.

  2. A ser assim, os interesses difusos reclamados, e que justificam tal particular direito de ação popular, seriam os pertencentes a todos os indivíduos, ou pelo menos a um grupo alargado de indivíduos, que se encontram numa situação de contitularidade de um bem decorrente de serem membros de uma mesma comunidade, não sendo assim suscetíveis de apropriação por quaisquer um desses, e até, por natureza, serem indivisíveis.

  3. O que se constata, é estar-se perante um já antigo conflito entre vizinhos, e a propósito de um eventual direito de servidão de passagem, repetido já em vários processos judicias e sempre com conclusão desfavorável aos mesmos AA. Recorridos que, tendo refinado a forma de contornar essas já proferidas decisões desfavoráveis e transitadas em julgado, agora, capciosamente, utilizam essa consagrada figura de defesa dos propalados interesses coletivos insuscetíveis de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT