Acórdão nº 911/13.3TASTS.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 17 de Fevereiro de 2016
Magistrado Responsável | MARIA LU |
Data da Resolução | 17 de Fevereiro de 2016 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Processo n.º911/13.3TASTS.P1 Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO No processo n.º911/13.3TASTS da Comarca do Porto, Instância Central de Matosinhos, 2ªsecção de Instrução Criminal, J2, a assistente B…, S.A. veio interpor recurso do despacho judicial, constante fls.646, proferido em 7/4/2015, que rejeitou, por manifestamente infundado, o requerimento para abertura da instrução que apresentara.
Inconformada com a decisão, a assistente interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]: 1. O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, que indeferiu o requerimento de abertura de instrução oportunamente apresentado pela Assistente, “por manifestamente infundado”.
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A decisão recorrida padece do vício de falta de fundamentação, gerador da respetiva nulidade; procede a uma errada aplicação do direito, dado que põe termo ao processo quando a lei determina que tenha lugar a fase instrutória, e gera nos presentes autos uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade.
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A decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução não está na discricionariedade do Tribunal, antes sendo admissível, APENAS e SÓ, nos casos expressamente previstos na lei.
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O n.º 2 do artigo 287.º do C.P.P., dispõe que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidade especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de fato e de direito de discordância relativamente à decisão de não acusação, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do C.P.P.
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Por força desta remissão, o RAI deve ainda conter a narração sintética dos fatos que fundamentam a aplicação, ao Arguido, de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e deve ainda indicar as disposições legais aplicáveis.
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O RAI apresentado nos autos observou todos os requisitos e formalidades acima identificados, dado que Assistente fez saber quais as razões pelas quais não podia concordar com o Despacho de arquivamento, descrevendo quais os concretos comportamentos do Denunciado suscetíveis de integrar a prática do crime de furto de eletricidade, circunstanciando-os no tempo e no lugar; e ainda descrevendo as razões pelas quais, no caso vertente, atenta a inexistência de um contrato de fornecimento de eletricidade, e impossibilidade fática de proceder ao corte do mesmo, se verificaram consumos conscientes, propositados e ilegítimos de energia, e como tal censuráveis do ponto de vista criminal.
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O Tribunal a quo não compreendeu o que, na realidade, está em causa nos presentes autos, dado que o crime, nos presentes autos, consiste precisamente no fato de existir, de modo propositado, e consciente, consumo de energia elétrica, causado pelo Denunciado, sem que, para o efeito, existisse qualquer contrato! 8. Foi precisamente por ter a convicção plena de que o Ministério Público não havia ficado com a perceção clara dos fatos alegados que a Assistente requereu a abertura de instrução, certa de que a mera reanálise judicial da prova documental junta com a Denúncia e da prova testemunhal produzida permitiria concluir por um juízo de manifesta probabilidade de ao Denunciado, em julgamento, vir a ser aplicada uma pena.
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No entanto, o Tribunal recorrido, antecipando um juízo de prognose que, nos termos da lei, apenas tem lugar no final da fase de instrução (cf. artigo 308.º do C.P.P.), optou por indeferir “liminarmente” o requerimento de abertura de instrução.
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E fê-lo, desde logo, sem fundamentação clara e suficiente, dado que se limita a referir o acima citado, sem invocar qualquer norma legal sustentadora da decisão.
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O que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do C.P.P., conjugada com o n.º 2 do artigo 374.º do mesmo diploma, determina a nulidade do despacho recorrido, a qual expressamente se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 379.º do C.P.P.
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Mais, a decisão recorrida procedeu a uma errada aplicação do direito, rejeitando o requerimento de abertura de instrução num caso em que a lei não permite tal rejeição.
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Dispõe o n.º 3 do artigo 287.º do C.P.P que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
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Ora, não estando, no caso vertente, em causa nenhuma decisão de rejeição por extemporaneidade do RAI ou incompetência do Tribunal, presume-se que o Tribunal a quo tenha estribado a sua decisão, no sentido de considerar o RAI “manifestamente infundado”, no conceito de “inadmissibilidade legal” da instrução.
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Porém, a doutrina e a jurisprudência são unânimes na interpretação restritiva que fazem deste fundamento legal de rejeição do RAI, precisamente de modo a evitar que o Tribunal antecipe, para a fase de admissão da instrução, um juízo de prognose que apenas pode e deve existir no final da mesma.
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O Tribunal recorrido, ao subsumir o caso vertente a uma hipótese de inadmissibilidade legal do RAI, justificativa da sua rejeição, fez uma incorreta e errada aplicação do direito.
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É inconstitucional, por violação do direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva, plasmado no artigo 20.º da nossa Constituição, a norma contida no n.º 3 do artigo 287.º do C.P.P., quando interpretada no sentido da inclusão, nos casos de inadmissibilidade legal aí previstos, as situações em que, pese embora o RAI contenha a narração sintética dos fatos e do direito aplicável, o Tribunal entenda que tais factos/direito não são suscetíveis de vir a fundamentar uma decisão de pronúncia.
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Tal traduz uma antecipação ilegítima do juízo de prognose que se relega para o final da fase de instrução, durante a qual, além da reanálise da prova produzida e do eventual oferecimento de novos meios de prova, terá, obrigatoriamente, lugar o debate instrutório, e apenas no terminus da mesma, ocorrerá a comprovação judicial da “bondade” da decisão tomada no final do inquérito.
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A decisão recorrida viola, pois, o n.º 3 do artigo 287.º do C.P.P. e, bem assim, o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
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O n.º 3 do artigo 287.º do C.P.P. deve ser interpretado restritivamente, incluindo-se no conceito de “inadmissibilidade legal” apenas situações de falta de pressupostos processuais para apresentação do RAI ou, quando apresentado pelo Assistente, a ineptidão do mesmo, por total omissão de indicação dos elementos subjetivos e objetivos do crime pelo qual se requer a pronúncia.
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Por força da prolação da decisão recorrida, encontram-se os presentes autos feridos da nulidade insanável prevista na alínea d) do artigo 119.º do CCP, a qual é de conhecimento oficioso e deverá ser declarada, com todos os efeitos legalmente previstos, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade.
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Impondo-se, por todo o exposto, e revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que, por estarem preenchidos os requisitos legalmente previstos para o efeito, determine a abertura de instrução, nos termos requeridos pela Assistente.
O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso [fls.680 a 682].
O arguido não apresentou resposta ao recurso.
O Sr. Juiz de Instrução Criminal sustentou a decisão recorrida [fls.685] Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que concluiu pela improcedência do recurso [fls.160].
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, apenas a assistente apresentou resposta, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida [fls.703 a 705].
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO Decisão recorrida É do seguinte teor o despacho recorrido: «Do requerimento de abertura de instrução: Alegando a requerente “B…, S.A.” uma acção penalmente relevante por parte do denunciado C… – “o impedimento físico de efectuar o corte de fornecimento diversas vezes tentado”, estava a mesma obrigada a alegar o cumprimento rigoroso das suas obrigações contratuais, no que respeita aos procedimentos exigidos para o referido corte de fornecimento. De acordo com o disposto no artigo 66.º do Regulamento de Relações Comerciais do Sector Eléctrico, aprovado pelo Regulamento n.º 496/2011, de 19 de Agosto, publicado no D.R., II Série, da mesma data, a interrupção do fornecimento de energia por facto imputável ao cliente só pode ter lugar após um pré-aviso de interrupção, por escrito, com a antecedência mínima de 10 dias em relação à data em que irá ocorrer. Não tendo a requerente alegado esse pré-aviso, não pode afirmar-se que seja merecedor de censura penal o simples acto de se vedar o acesso a funcionários da assistente, que pretendiam interromper o fornecimento de energia eléctrica, tanto mais que, conforme documentado nos autos, o denunciado já havia tentado, junto da O…, proceder à mudança de comercializador de electricidade. Logo, a denúncia e o requerimento de instrução apresentados não contêm factos, objectivos e subjectivos, que permitam fundamentar uma decisão de pronúncia, e como tal o requerimento deve ser indeferido, por manifestamente infundado, o que se decide.
Com algum benefício da dúvida, propendemos a considerar não existirem elementos que nos permitam concluir, sem mais, pela condenação da assistente em custas ou em taxa sancionatória excepcional, nos termos do artigo 520.° do Código de Processo Penal e do artigo 10.º do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.» Transcreve-se ainda parcialmente o requerimento de...
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