Acórdão nº 406/14.8TBMAI.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 05 de Dezembro de 2016
Magistrado Responsável | MIGUEL BALDAIA DE MORAIS |
Data da Resolução | 05 de Dezembro de 2016 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Processo nº 406/14.8TBMAI Origem: Comarca do Porto, Póvoa de Varzim - Instância Central – 2ª Secção Cível, Juiz 2 Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2º Adjunto Des. José Sousa Lameira *Sumário I- Mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública.
II- Entre o notário e as partes não se estabelece qualquer vínculo de cariz negocial, pelo que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza extracontratual.
III- A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas.
IV- O notário, enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, por mor do disposto no nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004, de 4 de fevereiro, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.
V- O referido normativo assume natureza de norma de proteção, porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
VI- O facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
VII- O estrito cumprimento do poder funcional estabelecido na alínea b) do nº 2 do art. 590º do Código de Processo Civil implica que o tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado.
VIII- O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
* Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I- RELATÓRIO B…, solteiro, de nacionalidade francesa, residente na …, Rue … – ….. – Lyon, França instaurou a presente ação declarativa de condenação contra C…, Notário no Cartório Notarial sito na Rua …, n.º …, Maia, alegando, em síntese, que: - Em 15.09.2011, adquiriu um imóvel, pelo valor de €30.000,00, no Cartório Notarial sito na Rua …, Maia, perante o réu; - O vendedor do imóvel exigiu que a escritura fosse realizada no dito Cartório e não em mais nenhum; - Durante as negociações que levaram ao negócio, o vendedor sabia que o dito imóvel estava onerado, mas ocultou tal informação do autor, bem sabendo que se tivesse conhecimento da penhora, o autor não teria realizado o negócio; - É estrangeiro, desconhece a legislação nacional e necessita de apoio de terceiros para compreender os passos do negócio; - Quando outorgou a escritura desconhecia que o imóvel estava onerado com uma penhora registada desde 07.09.2011 e o réu não fez a advertência às partes de que sobre o imóvel estava registada uma penhora, nem fez constar da escritura celebrada ter efetuado tal advertência; - Na escritura, o réu menciona ter consultado a certidão predial permanente; - Porém, por não ter analisado a certidão com a atenção que se impunha, o réu não se apercebeu de que sobre o prédio impendia uma penhora; - A penhora em causa veio a ser cancelada por o autor ter procedido ao pagamento da quantia exequenda do processo à ordem do qual o prédio fora penhorado, no montante de €46.000,00; - A conduta do réu viola os deveres deontológicos previstos no Estatuto do Notariado, tendo o mesmo sido condenado no processo disciplinar, numa multa de €.2500,00; - A Ordem dos Notários subscreveu seguro que inclui a responsabilidade civil profissional dos notários em consequência de erro, omissão ou negligência e que garante as indemnizações emergentes dos atos praticados pelos Notários no exercício das suas funções que causem danos patrimoniais a terceiros.
Conclui pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de €76.000,00, sendo €30.000,00 correspondente ao preço do imóvel e €46.000,00 referente ao montante que teve de pagar para obter o cancelamento da penhora que incidia sobre tal imóvel.
*O réu, regularmente citado, veio contestar a ação, alegando, em suma, que: - O imóvel foi vendido por preço inferior ao valor patrimonial, não constando da escritura que o imóvel é vendido livre de ónus e encargos e sendo que o preço foi pago antes da celebração da escritura. O referido leva a crer que as partes conheciam a existência da penhora e que mesmo assim o autor quis adquirir a fração; - Desconhece as negociações ocorridas entre as partes e limitou-se a reproduzir na escritura a vontade das partes; - Não há qualquer violação ilícita dos direitos do autor por parte do réu, enquanto nexo causal dos alegados danos; - Crê que o vendedor comunicou ao autor que a fração estava penhorada, pois apenas por essa razão se compreende que o preço tenha sido fixado abaixo do valor patrimonial; - Encontrando-se o comprador devidamente informado, não pode ser imputada qualquer responsabilidade ao réu; - Mesmo que o autor não tenha sido informado, era ao vendedor que incumbia tal dever, pelo que se está no âmbito da responsabilidade civil pré-contratual, não sendo o réu parte e, como tal, não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade; - A violação de qualquer dever jurídico pelo réu, não fundamenta a ilicitude relevante para integrar a responsabilidade civil extracontratual; - A actuação do réu não constitui causa adequada do dano sofrido pelo autor, pois o negócio foi acordado entre o autor e o vendedor, e se o vendedor não informou o autor, então, o autor deveria ter-se certificado de que podia adquirir o imóvel sem qualquer risco. O autor ao não ter observado os cuidados que se exigiam, foi a causa exclusiva, ou pelo menos contribuiu em grande parte para o dano que alega ter sofrido; - O dano indemnizável apenas poderá corresponder ao valor do preço de aquisição, ou seja, €30.000,00; - A culpa do réu, a existir, é meramente negligente, resultante de lapso na consulta da certidão predial; - Ainda que o réu tivesse feito a advertência de que sobre o imóvel impendia uma penhora, o autor sempre adquiria o imóvel, como adquiriu; - A Ordem dos Notários subscreveu um seguro de responsabilidade civil profissional que garante o pagamento de indemnizações até €.100.000,00 e o réu contratou uma apólice complementar de seguro de reforço com o capital mínimo de €.400.000,00 e, por isso, o réu não é responsável pelo pagamento de qualquer indemnização.
*A fls. 118 e seguintes, o réu veio deduzir incidente de intervenção acessória provocada de D…, Lda. – Sucursal em Portugal, na Av. …, n.º …, Lisboa, alegando a existência de um contrato de seguro da Ordem dos Notários e uma apólice complementar de seguro de reforço.
*Por despacho de fls. 139 foi admitida a intervenção acessória provocada da D…, Lda. – Sucursal em Portugal.
*Citada a chamada, apresentou contestação, defendendo, em síntese, que: - É parte ilegítima, pois é apenas um mediador de seguros e não uma seguradora, pelo que deve ser absolvida da instância; - A apólice invocada não era a apólice que vigorava à data do alegado sinistro, sendo certo, de qualquer modo, que a reclamação foi apresentada fora do período de seguro coberto; - Também a apólice individual não é aplicável, uma vez que o valor peticionado pelo autor fica dentro do capital seguro do seguro subscrito pela Ordem dos Notários; - O réu não participou o sinistro como lhe competia, o que constitui uma causa de exclusão de cobertura e determina a sua absolvição do pedido; - Os danos em causa também não estão protegidos pela apólice em causa, o que determina igualmente a absolvição do pedido; - Dos factos alegados pelo autor não resultam preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pois não há qualquer nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano do autor. A haver responsabilidade a mesma é do vendedor do imóvel, pois dolosamente omitiu que sobre o prédio impendia uma penhora.
Requereu ainda a intervenção principal provocada de E… e de F…, S.A. Portugal (por serem as seguradoras para quem estava transferida a responsabilidade civil desde 12.10.2011) e bem assim do vendedor do imóvel (G…).
*O réu, notificado da contestação apresentada pela chamada, veio defender que a mesma é parte legítima (fls. 182 a 184).
*Por despacho de fls. 187, foi indeferida a requerida intervenção provocada deduzida pela chamada D….
*A fls. 196 e seguintes, o réu veio aos autos informar que, na sequência da contestação da chamada, foi averiguar da natureza da mesma e apurou junto do Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundo de Pensões que aquela é entidade autorizada enquanto mediadora de seguros e resseguros, pelo que, é parte legítima. Termina pedindo que a D… seja...
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