Acórdão nº 277/13.1TAVFR.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 24 de Janeiro de 2018

Magistrado ResponsávelMANUEL SOARES
Data da Resolução24 de Janeiro de 2018
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 277/13.1TAVFR.P1 Comarca de Aveiro 2ª Secção do Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira Acórdão deliberado em Conferência 1. Relatório 1.1 Decisão recorrida Por despacho proferido em 4 de Julho de 2017 o tribunal de instrução criminal pronunciou o arguido B... por um crime de homicídio por negligência, previsto no artigo 137º nº 1 do Código Penal (CP), na sequência de requerimento de abertura de instrução (RAI) da assistente C....

1.2 Recurso O arguido recorreu pedindo a revogação do despacho e a sua substituição por outro que determine a não pronúncia e o arquivamento do processo. Em suma, invocou os seguintes fundamentos: - A decisão instrutória é nula por ter pronunciado o arguido por factos que constituem alteração substancial do RAI, que não continha os elementos objectivos e subjectivos do crime nem tão pouco a indicação da norma legal aplicável. Os factos aditados pelo tribunal, a pretexto de uma alteração não substancial, traduzem-se assim numa nova acusação.

- Foi violado o artigo 163º nº 1 do CPP, que confere à prova pericial um valor reforçado.

- Os factos imputados não estão suficientemente indiciados nos dados recolhidos em inquérito e instrução.

A assistente respondeu defendendo a improcedência do recurso por, em resumo, que os factos aditados resultam da prova feita em instrução e não constituem alteração substancial dos factos descritos no RAI, que a falta de indicação da norma legal aplicável é irrelevante, na medida em que indicou o tipo de crime e não causou prejuízo ao exercício dos direitos de defesa, que a perícia feita pelo IML é contraditória e inverosímil e o tribunal fundamentou a razão da sua divergência e que toda a prova recolhida aponta para a existência de indícios suficientes da prática do crime pelo arguido.

O Ministério Público respondeu limitando-se a manifestar concordância com a decisão recorrida e a defender a improcedência do recurso.

Na Relação o Ministério Público emitiu parecer favorável à procedência do recurso. Considera, em síntese, que o despacho de pronúncia é omisso quanto à causa da morte e à sua imputação à negligência do arguido e que deve prevalecer a conclusão da perícia médico-legal que afasta as ocorrências durante o internamento como causa da morte.

A assistente respondeu ao parecer, sustentando, de novo, a procedência do recurso.

  1. Questões a decidir no recurso As questões que temos de decidir são as seguintes: - A decisão instrutória é nula por violação da limitação da alteração substancial dos factos do RAI? - Foi violado o artigo 163º nº 1 do CPP? - Há indícios suficientes da prática do crime imputado ao arguido? 3. Fundamentação 3.1. Súmula da decisão recorrida 3.1.1.

    Factualidade considerada indiciada e imputada ao arguido (transcrição): 1- D..., foi internado no dia 17/02/2013, pelas 19H38, no Hospital de Oliveira de Azeméis (HOAZ), com dor epigástrica desde há 3 dias e 38,6° de febre, ficando na sala de observações até cerca das 23h, hora a que, mercê das queixas apresentadas, viria a ser transferido para o Hospital São Sebastião, em Santa Maria da Feira (fls. 183).

    2- No dia 18/02/2013, pelas 1:55h, já no Hospital de Santa Maria da Feira, D... foi observado pela médica especialista de cirurgia geral, a aqui arguida, Dr.

    a.

    E..., que determinou se aguardasse relatório de TAC abdominal e pélvico que havia sido pedido (fls. 183).

    3- O relatório desse exame viria a ser concluído em 18/02/2013, pelas 02:32h, e relatado pelas 02:49h, dando conta de "extensa área não captante no rim esquerdo que relacionamos com trombose renal, apenas com pequena área irrigada no polo inferior" (fls. 167).

    4- D... apresentava agravamento da função renal de 1,2 mg/dl em 29/09/2011 para 1,6mg/dl em 18/02/2013 e agravamento da função hepática, com AST/ALT de 21 e 26 U/L do dia 25/06/2010, para 55/62.

    5- Por solicitação do aqui arguido, Dr. F..., foram realizadas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos a 18/02/2013, pelas 01.05H, conforme relatório de fls. 1049 a 1054, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

    6- Foi então na madrugada desse dia 18/02/2013 diagnosticado pelo Dr. F..., a cumprir turno das 20h de 17/02, às 8H de 18/02 (fls. 459), embolia e trombose da artéria renal aguda e, contactado o Serviço de Cirurgia Vascular do HGSA, determinada a sua transferência para esse Serviço, com requisição por aquele médico de evacuação de doente pelas 7.45H (fls. 324) e admissão no HGSA pelas 10.03H - cfr. fls. 326 e sg..

    7- Já aí é observado pelo aqui arguido H... pelas 11.26H, que pede diversos exames e observação por cardiologia e nefrologia.

    8- Cerca das 12H, a assistente recebeu um telefonema do HGSA para aí se deslocar com urgência a fim de levantar os pertences de D... porque iria dar entrada no bloco operatório para lhe extraírem o rim esquerdo; a assistente deslocou-se então cerca das 15H ao HGSA na companhia da filha, G..., vindo a encontrar o marido numa maca, despido, com um lençol a cobri-lo, a tremer, com os lábios roxos, e sem qualquer acompanhante; tendo pedido ao arguido H... apoio para o seu marido, este ordenou a uma enfermeira que lhe tirasse a febre, cujo resultado foi de 39,5°c, dando-lhe então um analgésico; a assistente e a filha regressariam à sua residência pelas 16H convencidas de que a cirurgia se iria realizar.

    9- Ainda nesse mesmo dia, pelas 16.09H foi efectuado e relatado exame angio-TAC torácico-abdominal pedido para despiste de fonte embólica na aorta e avaliação da artéria renal esquerda, com o teor que consta de fls. 173 e aqui se dá por reproduzido, designadamente o seguinte: "Na artéria renal esquerda, identifica-se trombose mural excêntrica, a cerca de 3cm do ostio da artéria renal na aorta, condicionando uma estenose significativa, quase completa, do lúmen, com cerca de 1 cm de extensão. Identificam-se ainda outros trombos endoluminais em vários ramos da artéria renal ao nível do hilo renal esquerdo. O rim esquerdo apresenta múltiplas áreas hipocaptantes, extensas, sugestivas de enfarte mencionado na informação clínica.

    10- Após tomar conhecimento do resultado deste e demais exames pedidos, o aqui arguido H... decidiu "apenas por hipocoagulação em dose terapêutica. Volta ao Hospital da área de residência.".

    11- H... concluiu no relatório de episódio de urgência respectivo: "Embolia/trombose da artéria renal com indicação de hipocoagulação em dose terapêutica por tempo indefinido; sugere-se despiste de fonte cardioembólica e a vigilância das complicações que podem decorrer do enfarte renal. De momento, sem necessidade de outros cuidados por Cirurgia Vascular (fls. 166 e 1° Vol. Anexo de Documentos).

    12- Cerca das 18H, foi efectuado telefonema recebido pela filha mais velha de D..., identificando-se a autora como administrativa do HGSA, e comunicando, sem qualquer explicação, que afinal aquele já não iria ser operado.

    13- No mesmo dia 18/02/2013, D... viria a ser novamente transferido para o CHEDV, onde deu entrada no Serviço de Emergência cerca das 20h, onde prestava serviço o aqui arguido Dr. I... no turno das 14H às 22H (cfr. fls. 454), que o observou pelas 20.12h; pelas 21.50H regista no diário clínico a temperatura corporal de 39,0 °C e ainda o seguinte: i. "Após discutir caso clinico com colega de Medicina Interna e Cirurgia Geral decide-se: ii. - doente com isquemia rim esq 2° a trombose/embolia artéria renal; febre sustentada com subida da PCR + sinais indirectos de inflamação/infecção na TAC renal (HGSA) iii. indicação de rediscussão do caso clinico com Urologia.

    iv. Plano: v. colhe-se 2 hemoculturas aeróbios e l urocultura vi. medica-se com tazobac 4,5 g ev, gentamicina 240 gm ev, fluidoterapia ev e enoxaparina 60 mg sc vii. permanece neste serviço devendo ser discutido caso clinico com colegas de Urologia. " (cfr. fls. 183 a 185 e 325).

    14- Por solicitação da Dr.

    a J..., a prestar serviço no Serviço de Emergência Médica do CHEDV no dia 19/02/2013, são realizadas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos nesse dia 19/02/2013, pelas 10.45H, conforme relatório de fls. 1055 a 1061, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

    15- Em 19/02/2013, pela 16:26h a Dr.

    a J... "atendendo ao facto de não haver para já agravamento imagiológico", decide determinar o internamento de D... na Unidade de Cuidados Intermédios e emitiu nota de transferência cujo teor consta de fls. 170 a 172, e aqui se dá por reproduzido, designadamente: i. "Após discutir caso clínico com colega de Medicina Interna e Cirurgia Geral decide-se: ii. doente com isquemia rim esq 2° a trombose/embolia artéria renal; febre sustentada com subida da PCR + sinais indirectos de inflamação/infecção na TAC renal (HGSA) iii- indicação de rediscussão do caso clínico com Urologia. (...) iv. Contactada Urologia - Dr K... (CHVNG) que é de opinião que para já não há qualquer indicação para intervenção por parte da especialidade; Aconselhou realização de ecografia para verificar se houve agravamento do atingimento renal, nomeadamente lesões abcedadas. (...) A haver agravamento clínico e radiológico deve ser contactada novamente Urologia/Nefrologia".

    16- Já na Unidade de Cuidados Intermédios, D... passou a estar aos cuidados do arguido Dr. L... desde as 20H do dia 19/02/2013 até às 8H do dia 20/02/2013 (fls. 1079 e sg.), tendo este efectuado registos relativos ao doente no diário clínico pelas 23.28H, 23.29H e 00.52H (cfr. fls. 186).

    17- Por solicitação do Dr. L... são realizadas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos a 20/02/2013, pelas 08.15H, conforme relatório de fls. 1062 a 1067, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

    18- Nesse mesmo dia 20/02/2013, cerca das 10.05h a médica de serviço na UCI desde as 8H (fls. 1079 e sg.), Dr.

    a M..., contacta telefonicamente o seu colega do Serviço de Urologia do CHVNG/E, o aqui arguido N..., apresentando-lhe o caso clínico, ficando acordado repetição de TC renal para exclusão de lesão abcedada; nessa sequência regista no diário clínico (fls. 186): "A confirmar-se tal lesão haveria...

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